O presidente Jair Bolsonaro saiu vitorioso com as eleições de Arthur Lira (PP-AL) e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, respectivamente.
Mas o poder Executivo conseguirá atender e manter em sua base os 302 deputados federais e 57 senadores que apoiaram os candidatos pró-Bolsonaro no Congresso Nacional? Para o presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor da Universidade de Campinas (Unicamp) Marcos Nobre, a resposta é não.
A partir de agora, a expectativa é que a base governista murche nas duas casas. Na Câmara, onde Lira foi eleito com um forte apoio de emendas do governo federal, poderá ocorrer o que o professor chamou de “um jogo de chantagem mútua” entre o alagoano e o capitão do Exército brasileiro.
A vitória dos dois nomes pró-bolsonarismo nas casas, segundo Marcos Nobre, se deu por uma estratégia de criar dissidências não mais entre partidos, mas dentro de legendas estratégicas – o que prejudicou Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), desafeto do presidente.
Com isso, nenhuma carta pode ainda ser descartada – caso do impeachment. “Na mesa o impeachment está. A questão é saber se ele é viável ou não”, avaliou o professor e pesquisador, em conversa nesta terça-feira (2) com o Congresso em Foco.
Nobre, que estuda o Congresso e é um dos maiores especialistas em “Centrão”, escreveu sobre o modo de governar de Bolsonaro em “Ponto Final”, lançado em 2020 pela editora Todavia. O professor, que preside o think tank desde 2019, também comentou a possibilidade de uma “frente ampla” em 2022 e como este movimento ainda é incipiente no jogo político brasileiro.
Leia a entrevista a seguir:
Congresso em Foco: Quem realmente venceu as eleições do Congresso, tanto na Câmara quanto no Senado?
Marcos Nobre: O jeito mais fácil de dizer isso é: “Bolsonaro não foi derrotado na eleição”, porque a vitória vai depender de como ele vai lidar com a vitória, o que ele fará com ela. Acho que é uma coisa bastante evidente que ele não vai conseguir cumprir todas as promessas que o candidato Arthur Lira fez. Arthur Lira fez uma quantidade de promessas de cargos, verbas e recursos governamentais que não vai ser possível honrar simplesmente. Para se eleger, Arthur Lira vendeu terreno na Lua.
O que acontecerá é que haverá uma acomodação daqui pra frente e ela significa basicamente o seguinte: vai ser escolhida, no futuro, qual ser a real base que Bolsonaro poderá ter no Congresso. Quais serão os deputados e senadores que serão efetivamente atendidos pelo governo, e aqueles deputados e senadores que não serão atendidos pelo governo nas promessas que foram feitas por Arthur Lira e pela equipe ministerial que estava negociando a eleição na Câmara e no Senado. Bolsonaro ganhou tempo, que é algo que ele vem fazendo desde o no passado. Cada seis meses que ele consegue ganhar, são seis meses a mais, e seis meses mais perto da eleição de 2022, que é o objetivo dele: chegar na eleição de 2022 competitivo.
O quão natural foi essa base construída pelo Arthur Lira e que problemas ela pode trazer no futuro para o novo presidente da Câmara e para Bolsonaro? Seriam problemas no curto prazo?
Problema vai trazer – a questão é a dimensão do problema. Temos que lembrar o seguinte: não tendo mais financiamento privado de campanha, desde 2018, se há recursos e verbas do governo federal, ministérios, cargos – e isso faz muita diferença, em termos eleitorais. Isso é o único recurso que está disponível além do fundo eleitoral e partidário. Quem tem acesso ao governo tem uma vantagem muito grande em termos de financiamento. E já pudemos ver isso já nas eleições municipais de 2020. O acordo feito ali por volta de abril, maio de 2020, do Bolsonaro com o centrão, foi sacramento em um primeiro momento nas eleições municipais e em um segundo momento na eleição do Arthur Lira. Faz muita diferença.
Mas é óbvio que não há recursos e cargos para 302 deputados, e que não há recurso para 57 senadores. A partir de agora, tanto governo quanto Arthur Lira vão ter que decidir quem realmente vai fazer parte da base, e é uma base que precisa ter por volta de 200 deputados. Isso para que um processo de impeachment não seja aberto – se precisa de certa folga dos 171 necessários. Ou seja, um pouco mais de 100 deputados vão ficar insatisfeitos porque não receberão o que foi prometido. Vai ser entre os dois [Bolsonaro e Lira] e vai ser um jogo de chantagem mútua permanente. Assim se estabelecerá quem dos 302 deputados fará parte do consórcio governamental.
Com os novos comandos do Congresso, como ficam os pedidos de impeachment? Sairão da gaveta?
Quem teria de tirar a carta do impeachment da mesa são as forças políticas em geral e a sociedade – e isso eu não vejo ser retirado. Outra coisa diferente é qual a possibilidade de ocorrer o impeachment. Na mesa o impeachment está. A questão é saber se ele é viável ou não.
Ele só será viável se a rejeição a Bolsonaro atingir índices muito expressivos, alguma coisa como dois terços do eleitorado. Se você chegar num índice de rejeição desse tipo, o impeachment se torna politicamente viável. Significa não só diminuir a taxa de aprovação a Bolsonaro, a sua base de apoio na sociedade, mas também aumentar a rejeição. Não basta a pessoa passar para o grupo do nem-nem, que nem rejeita nem aprova: há que se ter de fato um caminho firme para desaprovação e uma perda do ótimo ou bom. Essa é a primeira condição.
Mesmo assim, tendo Arthur Lira na presidência da Câmara, mesmo que um movimento intenso de rejeição se forme na sociedade, Bolsonaro sabe que tem, com o Arthur Lira, ainda uma oferta – que o Lira é capaz de segurar o impeachment por algum tempo, não por muito tempo, mesmo que haja uma altíssima rejeição da sociedade. Vamos deixar isso claro: ou o impeachment é aberto até agosto, setembro no máximo, ou ele não acontecerá. A partir de outubro, já é eleição de 2022, e dificilmente o impeachment acontece – a menos que tenha uma catástrofe ainda maior do que estamos vivendo, que é difícil de imaginar. Impeachment exige estratégia – e até agora não existe uma estratégia coordenada das forças políticas por isso. Existem iniciativas isoladas, mas não coordenadas.
A eleição nas duas Casas se concentrou em figuras do MDB, DEM e PP. Foi uma disputa de “centrões”, ou havia uma oposição batalhando por poder dentro das duas casas?
As duas coisas não se excluem. “O centrão são muitos” – e ele rachou. O MDB deu origem ao termo que eu criei do “peemedebismo”, que cumpriu esse papel de líder do cartel de venda de apoio parlamentar até 2018. E o “emedebismo” continua, mesmo que o PMDB não seja mais o partido líder desse cartel e nem tenha mais esse nome.
As eleições municipais já mostraram que tinha um racha, e já reproduziram um centrão do racha importante. Se tinha uma parte que decidiu apoiar um governo de extrema-direita e um presidente de extrema-direita. Tem uma parte do centrão que resolveu se organizar independentemente do governo Bolsonaro – o que poderíamos chamar de “direita tradicional”– e havia a esquerda, que embora não tenha se organizado como um campo de programa único ou com articulação suficiente, é considerado um campo.
Essa foi a grande derrota dessa eleição: a direita tradicional tentando se organizar independente do Bolsonaro foi um projeto que recebeu um duro golpe nessa eleição para Câmara, especialmente pelo número de votos, pela falta de real competitividade do candidato Baleia Rossi.
Vamos ver o que vai acontecer porque o Arthur Lira e o governo bolsonaro não vão poder cumprir tudo o que prometeram e vai haver muita gente insatisfeita e muitas perderão e, já que não farão parte do governo, irão se juntar à direita tradicional, se desgarrando da base de apoio de um presidente de extrema-direita. Isso pode sim acontecer.
Ao mesmo tempo, os rachas que ocorreram não foi entre partidos, mas dentro dos próprios partidos, e essa foi a estratégia do Arthur Lira e do governo Bolsonaro para minar as chances do Baleia Rossi. Você mencionou o Rodrigo Pacheco: a primeira grande jogada do governo Bolsonaro não foi apoiar o Arthur Lira, mas sim apoiar o Rodrigo Pacheco porque, com isso, eles racharam o DEM, transformando o Rodrigo Pacheco no candidato do Bolsonaro e enfraquecendo o Maia na Câmara. A segunda grande jogada foi entrar em todos os partidos, começando pelo DEM, e rachar os partidos. Rachar o PSL, o MDB e assim por diante.
Como fica o MDB?
Este é o resultado mais importante dessa eleição. No caso do MDB, há que se ver que no Senado há uma enorme bancada, mas que na Câmara ele é um partido pequeno – ou melhor, um partido médio porque todo mundo tem o mesmo tamanho. Agora o MDB também mudou de papel: se ele vai aderir à base que vai ser formada de apoio ao governo Bolsonaro ou se ele tentará continuar unido a esta direita tradicional é o que teremos de ver.
Tem um lado onde o Bolsonaro chama o Michel Temer para o governo dele – portanto, rachando o MDB – e ao mesmo tempo há o Baleia Rossi de independência em relação ao Bolsonaro. Precisamos ver quem é que ficará insatisfeito, e qual será a lógica do governo e do Arthur Lira para estabelecer a lista dos insatisfeitos. Se será uma coisa partidária ou transpartidária, no sentido de aprofundar rachas internos nos partidos.
A gente ouviu o conceito de “frente ampla” na candidatura do Baleia Rossi – uma frente que foi se desmanchando no ar até o dia da eleição. Quais lições esse caso dá para 2022?
Caracterizar a atuação dos partidos do Congresso, nessas eleições para mesa diretora, como “Frente ampla”, não faz muito sentido – porque no Senado ela não se repetiu. Para começar, se é frente ampla, ela tinha que ser coerente nas duas Casas, e ela não foi.
Em relação à ideia de frente ampla, precisa-se fazer algumas distinções importantes: ela pode ser o resultado de uma movimentação pelo impeachment. Por exemplo: se houver um crescimento exponencial da rejeição ao governo Bolsonaro, essa frente ampla pode se reformar para organizar o impeachment.
Em 2022, uma frente ampla não pode ser uma frente eleitoral, onde se haverá uma candidatura única anti-Bolsonaro. Não há nenhum cenário onde isso seja possível. Uma frente ampla em 2022 só pode ter um efeito eleitoral se houver um acordo de todas as candidaturas não-bolsonaristas de apoio a uma candidatura do campo democrático no segundo turno, seja ela qual for, que venha a enfrentar o presidente. Se o Bolsonaro chegar ao segundo turno em 2022, quem quer que chegue com ele lá deve receber o apoio de todas essas forças anti-Bolsonaro, já que a frente ampla é contra ele.
Como isso se forma ou não se forma: se houver, primeiro, a sociedade decidir rejeitar Bolsonaro em índices realmente muito elevados. E se houver uma estratégia, uma coordenação e uma ação conjunta dessas forças políticas diferentes. Que elas decidam fazer essa frente ampla tanto para proceder o impeachment do Bolsonaro tanto para ter esse efeito na eleição de 2022.
Sob quais condições essa frente nasceria?
Tanto no caso do impeachment do Bolsonaro quanto no caso de um acordo para o apoio de qualquer candidatura que venha a se opor o presidente no segundo turno, nestes dois casos é um acordo que não pode ser simplesmente formal, mas que deve ser em cima de alguns pontos mínimos programáticos.
Teria de ser uma regeneração das regras de convivência política no país, que desde 2014 foram abandonadas. Em nenhum momento, nenhuma força política hesitou em querer tirar a outra força política do jogo de maneira desleal. Este tipo de convivência política é fundamental por uma razão muito simples: a democracia só funciona não se alguém ganha, mas se alguém aceita perder.
A frente ampla, se ela vier um dia a se formar por pressão da sociedade – porque até o momento os partidos não estão decididos a fazer isso – ela tem que representar uma renegociação dos termos de convivência e de competição política no país, senão ela não tem sentido. Claro, isso é muito difícil. Esse processo de rasteiras, de golpes e quebra das regras de convivência política e de desrespeito criou muitas mágoas e dificuldades que talvez não sejam superáveis. E se elas não forem superáveis a frente ampla não se forma.
E há esse esforço hoje?
O que a gente vê hoje é que não há uma estratégia clara, por parte das forças não-bolsonaristas de ação conjunta. Isso não existe. Especificamente no caso da esquerda, o campo sequer consegue ter uma estratégia unificada contra Bolsonaro. Nem em termos programáticos, nem eleitorais, nem em ações concretas.
Há duas frentes que formam a frente ampla, a de esquerda e de direita (excluindo a extrema-direita e o apoio ao Bolsonaro) – mas cada um desses campos tem que se organizar por si mesmo e aí estas duas frentes negociariam entre si. Isso que seria uma frente ampla.
Foto: Cleia Viana.