O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (20), por 9 votos a 1, determinar a suspensão imediata da produção, pelo Ministério da Justiça, de dossiês sobre vida pessoal, escolhas pessoais, políticas e práticas cívicas dos cidadãos identificados como integrantes de movimento político antifascista e de oposição ao governo Jair Bolsonaro.
O tribunal analisou ação da Rede Sustentabilidade, que questiona a produção de um suposto dossiê pelo ministério (veja detalhes sobre o caso mais abaixo).
O julgamento teve início nesta quarta, com o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, pela suspensão.
A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria Geral da República pediram a rejeição da ação.
Segundo o G1, após o julgamento, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, afirmou em nota que a decisão do Supremo “reconhece a importância do regular exercício da atividade de inteligência como essencial para o Estado Democrático de Direito e a segurança dos cidadãos” (leia a íntegra da nota ao final desta reportagem).
Votos dos ministros
Cármem Lúcia – Em voto proferido na quarta-feira (19), a relatora Cármen Lúcia contestou os argumentos pela rejeição e afirmou que a ação se justifica.
“Não é dito: ‘não é dossiê, não há relatório'”. “A pergunta é simples: existe ou não? Se existe e estiver fora dos limites constitucionais, é lesão a preceito fundamental. Se não existe, bastaria dizer que não existe”, afirmou a ministra.
Cármen Lúcia também disse ter recebido do ministro da Justiça, André Mendonça, nota explicativa sobre o relatório e que, nessa nota, ele afirmou que não solicitou qualquer relatório e só teve conhecimento da existência do documento pela imprensa.
“Benza Deus a imprensa livre do meu país, benza Deus que temos ainda Judiciário que tem conhecimento disso e que dá importância devida para a garantia da democracia no sentido de a gente verificar do que se trata, do que é e qual a resposta constitucional a ser dada”, disse a ministra. Alexandre de Moraes – Primeiro a votar nesta quinta-feira, o ministro Alexandre de Moraes disse que a existência desse tipo de material não foi posta em dúvida em nenhum momento e que relatórios de inteligência não podem ser feitos com objetivo de “bisbilhotar” preferências ideológicas de servidores.
“Uma coisa são relatórios para se verificar eventuais manifestações que possam interromper, como houve com a greve dos caminhoneiros, o abastecimento. São fatos. Outra coisa é começar a planilhar estado por estado, policiais militares, civis que são lideranças eventualmente contra o governo, contra manifestações realizadas a favor do governo. Qual o interesse disso?”
O ministro também disse que o suposto dossiê, a que os membros da Corte tiveram acesso, contém informações “extremamente precárias” para um sistema de inteligência que “devia ser muito melhor”, e a maior parte é tirada de redes sociais.
Segundo Moraes, os sistemas de inteligência “deveriam ser mais inteligentes” e oferecer informações “oportunas e confiáveis”. Moraes argumentou, no entanto, que os órgãos não podem atuar fora de sua finalidade, para “bisbilhotar” servidores.
“Há gravidade dos fatos, sobretudo por ter havido desvio de finalidade. Não é essa a razão da existência dos órgãos de inteligência”, disse. “Foi feito mais para ‘fofocaiada’ do que para um relatório de inteligência.”
Edson Fachin – O ministro Edson Fachin também acompanhou a relatora, afirmando que esse tipo de coleta de informações sobre escolhas pessoais e políticas de cidadãos só se cogita “em governos autoritários”.
“A administração pública não tem, nem pode ter, o pretenso direito de listar inimigos do regime”, afirmou.
Fachin defendeu que “a imprensa exerce especial papel de proteção do regime democrático e essa função social deve ser prestigiada e levada a sério” e que “o risco revelado pela possibilidade de construção de dossiês investigativos, travestidos de relatório de inteligência, contra inúmeros servidores públicos e cidadãos pertencentes a movimento de protesto, deve gerar preocupações quanto à limitação constitucional do serviço de inteligência.”
Luís Roberto Barroso – O ministro Luís Roberto Barroso argumentou que a atividade de inteligência é importante, mas que esse tipo de monitoramento para saber o que fazem eventuais adversários é completamente incompatível com a democracia, a menos que se tivesse qualquer elemento para supor que eles tramavam contra o estado e contra as instituições democráticas.
“Mas se a preocupação fosse efetivamente essa, talvez fosse o caso de monitorar os grupos fascistas, e não os grupos antifascistas”, completou.
Rosa Weber – A ministra Rosa Weber disse o que não vê “interesse legítimo” no uso do aparato da inteligência no “que só pode ser descrito na pior das hipóteses como bisbilhotice”. “Há desvio de finalidade sempre que o ato é praticado contra o interesse público.”
Segundo a ministra, “o silêncio das entrelinhas é mais eloquente do que das palavras lançadas”, referindo-se a nota técnica em que o Ministério da Justiça não nega ou confirma a existência do dossiê.
“O poder arbitrário sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses do governado, o medo como princípio da ação, traduz as marcas registradas da tirania”, fundamentou.
Luiz Fux – O ministro Luiz Fux deu o voto que levou à formação da maioria pela suspensão da produção de informações de cidadãos pelo Ministério da Justiça.
Fux defendeu que “todo estado soberano reclama a existência de um serviço de inteligência”, mas que ninguém pode ser bisbilhotado por suas opiniões.
“O STF tem dado exemplos extremamente significativos de que liberdade de expressão é algo que combina com a democracia. Uma investigação enviesada, que escolhe pessoas para investigar, revela uma inegável finalidade intimidadora do próprio ato de investigação”, criticou.
Fux também afirmou que “o que se contém nesse documento são fatos impassíveis de serem categorizados como fatos de relatório de inteligência”.
“Deveria se denominar relatório de desinteligência”, disse. “Estamos no estado democrático de direito, é proibido proibir manifestações democráticas”, completou.
Ricardo Lewandowski – O ministro Ricardo Lewandowski defendeu não ser cabível, em um estado democrático de direito, que “se elabore dossiês contra cidadãos nos quais constem informações sobre preferencias políticas e ideológicas”.
“O que não se admite é que num estado democrático de direito se elabore dossiês sobre cidadãos dos quais constem informações quanto as suas preferências ideológicas, políticas, religiosas, culturais, artísticas ou, inclusive e especialmente, de caráter afetivo”, afirmou.
Para Lewandowski, é importante que o STF “estabeleça desde logo alguns parâmetros para esta importante atividade estatal, para que nós não revivamos a história recente, e desta vez como farsa”.
Gilmar Mendes – Em seguida, o ministro Gilmar Mendes argumentou que “a atuação estatal indevida tem efeito pernicioso sobre a sociedade como um todo, porque gera desestímulo a ideias, desestímulos ao debate de ideais e de ideias contrárias àquelas defendidas pelo governante”.
O ministro disse que há “plausibilidade jurídica” da ação quando afirma que os servidores críticos ao governo estavam sendo monitorados.
“O Ministério da Justiça não apresentou qualquer justificativa plausível para a produção de relatórios sobre os integrantes do movimento antifascista.”
Gilmar Mendes afirmou ainda que os dados mostram que os relatórios têm ocorrido durante a atual gestão do governo Bolsonaro, não somente após a nomeação do atual ministro da Justiça, André Mendonça. Mendes citou pedido de informações feito no dia da demissão do ex-juiz Sergio Moro, em 24 de abril.
Em nota, Moro afirmou que “desconhece qualquer relatório de inteligência sobre movimentos antifascistas produzido durante a sua gestão”. Segundo Moro, “causa estranheza a suposta requisição de um relatório” no dia de sua demissão e que seu trabalho “sempre foi pautado pela legalidade, ética e respeito à Constituição Federal.”
Marco Aurélio Mello – Único voto divergente, o ministro entendeu que a ação não é adequada e divergiu da relatora, votando contra a suspensão.
Segundo o ministro, em “um estado democrático de direito, o centro político é o Parlamento”, que deveria convocar o titular da pasta a prestar esclarecimentos. “Mas insiste-se em deslocar matéria estritamente política para o Supremo, provocando um desgaste incrível em termos de Poder Judiciário”, afirmou.
Marco Aurélio Mello disse que o relatório é um “cadastro de pessoas naturais e entidades” e de “movimentos que estão ocorrendo no território brasileiro”. E que se trata de um “cadastro lícito” com pessoas de diversas ideologias, movimentos “favoráveis e contrários ao governo”. “Envolve, portanto, dados necessários e indispensáveis à manutenção da segurança pública.”
“A informação, para quem governa, é básico”, disse, citando que o ministro Luiz Fux será o próximo “governador” do Judiciário. Fux assume a presidência da Corte em setembro, substituindo o ministro Dias Toffoli.
Dias Toffoli – Último a votar, Toffoli também acompanhou a relatora e defendeu a atuação “escorreita” do atual ministro da Justiça, André Mendonça.
Ele disse ser necessário “colocar limites”, mas que não se pode “fazer injustiças com pessoas que dedicam a vida pública ao Estado brasileiro de maneira correta”.
“Há muitas pessoas que às vezes aparecem na imprensa bem na foto, mas são péssimas na vida pública, criando fundos para administrarem, criando inimigos políticos para depois serem candidatos, e afastando as pessoas da vida pública e querendo galgar eleições futuras. Eu já disse isso e não preciso repetir, para bom entendedor meia palavra basta”, afirmou, sem citar nomes.
Toffoli disse que Mendonça demonstrou que não foi ele quem criou o relatório. “Governos anteriores tinham, ministros da Justiça anteriores tinham”, completou, também sem citar nomes.
Entenda o caso
Na ação, a Rede pede ao STF a “imediata suspensão da produção e disseminação de conhecimentos e informações de inteligência estatal produzidos sobre integrantes do ‘movimento antifascismo’ e professores universitários”.
A ação também pede a abertura de inquérito pela Polícia Federal “para apurar eventual prática de crime por parte do ministro da Justiça e Segurança Pública e de seus subordinados”, além da remessa dos conteúdos já produzidos ao STF para análise, com a manutenção provisória do sigilo.
Na semana passada, a ministra Cármen Lúcia pediu informações ao Ministério da Justiça, que não confirmou nem negou a existência do dossiê. Em documento encaminhado ao STF, no qual não incluiu o relatório, o MJ afirmou que não coleta informações com intuito investigativo e que isso difere de atividade de inteligência.
Cármen Lúcia afirmou que, se a “gravidade do quadro descrito se comprovar, “escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”.
Em voto proferido no julgamento sobre fornecimento de dados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Cármen Lúcia já ressaltou que “arapongagem” (investigação clandestina) é crime e, quando praticada pelo Estado, “é ilícito gravíssimo”.
A existência do relatório foi revelada pelo portal UOL. Segundo a reportagem, “o Ministério da Justiça colocou em prática, em junho, uma ação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’ e três professores universitários”.
Ainda conforme a reportagem, a pasta “produziu um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas”. O relatório foi feito pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), ligada ao ministério.
Após a revelação da existência do documento, ministro da Justiça, André Mendonça, determinou a abertura de uma sindicância para apurar as circunstâncias da elaboração do relatório. Ele também substituiu o então diretor do órgão, Gilson Liborio.
A abertura da sindicância foi citada pela ministra em seu voto. “Se não há dossiê, do que estamos falando em matéria administrativa, que levou até a afastamento de servidor?”, argumentou a ministra, em referência ao afastamento.
No último dia 11, o suposto dossiê foi entregue à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional. O presidente da comissão, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), disse que assinou um termo de confidencialidade e que entregaria o relatório aos demais membros da comissão.
Na segunda, o ministério anunciou a entrega do material ao STF e à Procuradoria-Geral da República. Na terça, a ministra Cármen Lúcia determinou o envio do material as demais ministros da Corte.
Nota do ministro da Justiça Leia abaixo a íntegra de nota divulgada após o julgamento pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça.
Nota à imprensa
Brasília, 20/08/2020 – A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 722 reconhece a importância do regular exercício da atividade de inteligência como essencial para o Estado Democrático de Direito e a segurança dos cidadãos.
Também confirma a correção dos parâmetros que já havia estabelecido para a instituição da Política, da Estratégia e do Plano Nacional de Inteligência de Segurança Pública, até então inexistentes, determinada pela Portaria 463/2020, por mim firmada no dia 16 de agosto.
Por fim, agradeço as manifestações proferidas por vários Ministros da Suprema Corte, reconhecendo a minha integridade, transparência e isenção em relação ao episódio. Tais declarações me motivam a continuar trabalhando por Justiça e pela Segurança dos brasileiros.
André Luiz de Almeida Mendonça
Ministro da Justiça e Segurança Pública
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