A partir da noite desta sexta-feira (12), a maior parte do Chile volta para a quarentena nos finais de semana, devido ao aumento de contágios. Algumas cidades entram num regime de lockdown total. As novas regras de restrições convivem, numa aparente contradição, com uma bem-sucedida campanha de vacinação que faz do Chile o país que, diariamente, aplica mais vacinas no mundo. Na região, a maior preocupação do Chile é com a falta de controle no Brasil.
O novo lockdown é uma prova de que a vacinação parcial, por mais bem-sucedida que seja, não é suficiente para cantar vitória. O Chile já ultrapassou os 5.000 casos por várias vezes em 24 horas, chegando a um total de 873.512 pessoas com diagnóstico positivo e 21.362 mortes ao longo de um ano de pandemia.
A sensação de segurança de um processo de vacinação elogiado no mundo todo e o número estável de mortes diárias levou a um relaxamento das medidas de prevenção. “Há mais casos, mas são menos graves. Isso faz com que as pessoas se preocupem menos. Outro fator importante é que as pessoas se vacinam e se relaxam. Os filhos veem que os pais estão vacinados e se relaxam. Os netos veem que os avós já se vacinaram e começam a sair mais”, explica à RFI Brasil o sociólogo e analista político, Patricio Navia.
O resultado foi que, desde o final de fevereiro, enquanto o país vacinava a toda velocidade, o número de contágios voltava a patamares preocupantes. No total, 43 regiões no Chile, onde vivem 90% da população do país, entram em quarentena nos finais de semana, a partir das 22 horas de sexta-feira até as 5h de segunda-feira. Além disso, rege no país um toque de recolher no mesmo horário, todos os dias.
Dos 19 milhões de habitantes do Chile, 17 milhões entram nessa nova quarentena, incluindo os sete milhões de habitantes da região metropolitana de Santiago. Em algumas cidades como Valparaíso e La Serena, o lockdown é total mesmo durante a semana. Apenas 11 regiões vão flexibilizar as restrições. Desde o começo da pandemia, o presidente Sebastián Piñera optou por um sistema de quarentenas seletivas por bairros ou cidades.
“O governo chileno sempre procurou combater a pandemia ao menor custo econômico possível. Essa estratégia explica tudo o que Piñera fez, incluindo a bem-sucedida campanha de vacinação, mas também os lockdowns seletivos para produzir o menor impacto negativo possível na economia”, explica Navia, professor da Universidade de Diego Portales, no Chile, e da New York University, nos Estados Unidos.
O país que mais vacina por dia no mundo
Na segunda-feira (8), o Chile tornou-se o país que vacina mais rápido no mundo em relação à sua população. A quantidade de vacinas diárias aplicadas no Chile ultrapassou a de Israel, até então o líder. O país aplica em média 200 mil doses por dia. Seria como se o Brasil, onze vezes mais populoso, vacinasse 2,2 milhões de pessoas por dia.
Até agora, o Chile já vacinou 4,618 milhões de pessoas, equivalentes a 24% da população total. Na próxima segunda-feira (15), os vacinados devem chegar aos 5 milhões, atingindo com duas semanas de antecedência a meta de vacinar todos os grupos de risco até o final de março.
As pessoas que não pertencem a nenhum grupo de risco começariam a ser vacinadas a partir do dia 1.º de abril, mas a data deve ser antecipada. Nesse ritmo, a meta de vacinar 15 milhões de pessoas no primeiro semestre, equivalente a 80% da população, deve ser atingida antes, fazendo do Chile o primeiro país da América Latina a atingir a chamada imunidade de rebanho.
O Chile já recebeu quase 11 milhões de doses, principalmente da chinesa Sinovac, das 35 milhões de doses que garantiu com todos os laboratórios. É suficiente para vacinar 90% da população. O presidente Sebastián Piñera quer deixar o poder dentro de um ano como o presidente que venceu a pandemia e que vacinou toda a população.
“A visão que as pessoas têm do presidente Sebastián Piñera não vai mudar muito nem com uma vacinação bem-sucedida nem com o aumento dos casos. Os chilenos queriam se divorciar de Piñera, mas veio a pandemia. É como numa família em que o casal quer se divorciar, mas chega a notícia de que o filho tem uma doença grave. Adiam o divórcio, mas, uma vez superada a doença, provavelmente chegará o divórcio”, acredita Navia.
O segredo do sucesso
Enquanto a maioria dos líderes do mundo concentrava-se em administrar o isolamento social para evitar o colapso sanitário, o presidente chileno, Sebastián Piñera, de origem empresarial, exibiu a sua visão de mercado: começou a negociar com os laboratórios e investir na compra de vacinas. Antecipou-se aos demais governos concorrentes e diversificou o investimento em várias farmacêuticas.
“O presidente Piñera é um homem de negócios que se importa muito com a economia. Percebeu logo cedo os custos e os benefícios das medidas. Entendeu que a única forma de evitar as consequências na economia era a imunidade de rebanho através das vacinas. E decidiu investir nessa saída com a lógica de mercado. Piñera tem outras fraquezas, mas nesse ponto, ele faz as coisas muito bem”, avalia Patricio Navia.
Os primeiros contatos começaram ainda em março. Foram 11 laboratórios dos quais resultaram cinco pré-contratos a partir de maio, inclusive com o pagamento antecipado, mesmo que fosse dinheiro perdido. Foi uma aposta que deu certo. Por isso, hoje as vacinas chegam em tempo e em forma ao Chile.
“Os laboratórios diziam que as vacinas só estariam prontas depois de um ano ou um ano e meio. O presidente dizia que ‘mesmo que perdêssemos dinheiro, tínhamos de avançar’. Eu achei que ele estivesse completamente louco”, revelou o ex-ministro da Saúde, Jaime Mañalich, que estava no cargo há um ano.
O presidente chileno não questiona a Ciência nem minimiza o vírus. Para compra e para os ensaios clínicos, integrou os Ministérios da Saúde, da Ciência e das Relações Exteriores com universidades e com o conselho assessor de vacinas.
Para a logística de distribuição, o governo coordenou com províncias e municípios. Além disso, o Chile conta com uma ampla e bem funcional rede de atendimento primário. Outra lógica empresarial é a integração público-privada para ampliar a infra-estrutura de vacinação a 1.400 pontos. Os centros de vacinação não são apenas hospitais e postos de saúde. Incluem estádios, escolas e até “shopping center”.
Todos os que podiam vacinar, tornaram-se vacinadores, inclusive os dentistas do sistema privado.O país se tornou uma espécie de mutirão social, apontando para o mesmo rumo. Essa união de forças acontece num país fraturado socialmente, marcado pelos mega protestos contra o governo durante os dois últimos anos.
“A vacinação é o único ponto de unidade neste país que está bastante polarizado. Todos acreditam que a vacina é boa, que é importante, ao contrário do Brasil, onde o presidente questiona a necessidade da vacina”, compara Patricio Navia.
“Para a esquerda, o principal interesse talvez passe mais pela saúde das pessoas. Para a direita, talvez porque interesse mais a economia. Mas, por pragmatismo, todos estão empurrando na mesma direção. Não há vozes que questionem a vacina e isso ajuda muito no processo de vacinação”, indica.
Sucesso do Chile não será completo sem Brasil
A Organização Mundial da Saúde adverte que ainda é cedo para cantar vitória. O governo chileno sabe que não há país a salvo enquanto todos não se salvarem, principalmente os vizinhos da região atrasados na vacinação ou sem controle do vírus, como no caso do Brasil.
“A situação no Brasil é um problema para o Chile. Se o Brasil continuar com problemas, os chilenos não vão poder viajar a outros continentes porque a lógica no exterior é que, se o Brasil tem problemas, toda a América do Sul tem problemas”, aponta Patricio Navia.
“Não basta que todo Chile seja vacinado. É preciso que todos os vizinhos também sejam. O Chile precisa que o Brasil exerça a sua liderança porque em jogo está toda a região”, sublinha o cientista político.
Segundo o G1, o Chile doou 40 mil doses, metade ao Paraguai, metade ao Equador. A maior preocupação do Chile é com o Brasil e com a variante brasileira. O governo chileno vai começar a testar os passageiros que chegarem do Brasil, mesmo que sejam chilenos. Fará um teste de PCR na chegada, mesmo que o passageiro chegue com um negativo. E, para os que chegarem do Brasil, será obrigatória também uma quarentena de 11 dias em território chileno.
Foto: Ivan Alvarado.