cancelamento do Carnaval para conter aglomerações e o contágio da Covid-19 não suspenderá apenas a folia nacional. Haverá impacto sobre a geração de riqueza e de postos de trabalho.
Dados reunidos pela Folha com base nos festejos de 2020 indicam que pelo menos R$ 8 bilhões deixarão de circular na economia. Cerca de 25 mil empregos temporários também não serão criados, segundo estimativa da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo).
Carnaval demanda fantasias, lantejoulas, maquiagens, trio elétricos, além de muita comida, bebida e movimento de vai e vem –para chegar na folia ou fugir dela. Por isso, mobiliza uma extensa cadeia de fornecedores de diferentes áreas de indústrias, comércios e serviços. Incluem-se aí desde o ambulante que vende cerveja no isopor à área de marketing de grandes multinacionais.
De acordo com Fábio Bentes, economista da CNC, por causa de sua capilaridade, é até complicado dimensionar a suspensão do Carnaval. Pesquisa realizada anualmente pela entidade com 3.800 municípios mostra que a arrecadação da festa em 2020 cresceu 20% em relação a 2019, e a projeção antes da pandemia era de ascensão desse mercado.
Lembrando: no ano passado, a data ocorreu antes de o coronavírus ser oficialmente registrado no país. Na sequência, o turismo afundou. Foi um dos segmentos da economia que mais sofreu. No ano passado, encolheu 13% e levou ao fechamento de 397,4 mil vagas formais, segundo cálculos da CNC.
“O Carnaval é considerado o Natal do setor de turismo. Mesmo com cancelamentos de pontos facultativos em alguns municípios, onde alguma receita ainda poderá ser gerada, a perda neste ano é drástica”, afirma Bentes. Segundo o economista, o Rio de Janeiro e as capitais do Nordeste devem ser mais impactadas economicamente.
No Rio, 10 milhões de turistas movimentaram R$ 4 bilhões no ano passado. Como a festa carioca é mais longeva e tradicional, a sua suspensão é um baque, especialmente para o turismo de estrangeiros. “Historicamente, o Rio recebe mais turistas internacionais, que tem gasto médio maior”, diz Bentes.
Em 2020, a ocupação de hotéis na capital fluminense foi de 98%, durante o Carnaval. Neste ano, a expectativa é que seja de pouco mais de 50%, conta Alfredo Lopes, presidente do Sindicato dos Meios de Hospedagem do município. “É o feriado mais importante para o nosso setor, em número de reservas e consumo”.
Segundo ele, em tempos sem pandemia, a hotelaria contrata trabalhadores extras para o período, em torno de 5% a mais que o efetivo normal. Na pandemia, não haverá contratação adicional. “Não temos como compensar a ausência desse evento, mas não tem o que fazer diante da pandemia”, afirma.
A segunda-feira de Carnaval será dia normal de trabalho no Rio, já que, na tentativa de deter carnavalescos rebeldes e dar algum fôlego à economia, a prefeitura suspendeu o ponto facultativo.
“Não abríamos lojas na segunda-feira de Carnaval desde os tempos de desfiles na Presidente Vargas, quando não existia a Sapucaí”, diz Eduardo Blumberg, presidente do Polo Saara (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), organização que reúne 800 lojas populares no centro do Rio, que empregam 7 mil pessoas.
Em tempos normais, a região fatura bem vendendo adereços e fantasias para o feriadão. Sem essa renda, o desânimo por lá é grande. “Mesmo abrindo na segunda, não vai compensar o prejuízo”, diz Blumberg.
O coordenador de economia da FGV, Joelson Sampaio, ressalta que profissionais responsáveis pela viabilidade do evento já estão sofrendo antes do evento.
De acordo com a Sebastiana, associação independente dos blocos de Carnaval de rua, que representa 11 entidades do Rio de Janeiro, cada desfile de blocos demanda cerca de 300 profissionais. Segundo Rita Fernandes, presidente da Sebastiana e do Fórum Carioca de Blocos, a festa gera 5 mil postos de trabalho.
“Cada desfile de bloco gera renda, envolve contratação de 200 ritmistas, de 100 a 200 profissionais de apoio para carregar as cordas que protegem os músicos, carro de som, cerca de 60 produtores, além de costureiras”, enumera.
A costureira Regina Nistaldo é uma delas –ou era. Trabalhava há mais de uma década produzindo roupas para a escola de samba Salgueiro. No último Carnaval, chegou a ganhar mais de R$ 8.000 costurando indumentárias de cem baianas da escola e se apresentando como baiana-show, como são chamadas as integrantes das escolas que representam as agremiações em eventos. Ganhava cerca de R$ 1.000 por mês costurando para musas da escola, ensaios técnicos e demais apresentações.
“Desde fevereiro do ano passado não tenho costura para Carnaval. Para não dizer que não fiz nada, em novembro fiz uma roupa de porta-bandeira para um Carnaval virtual”, afirma. “Mas a gente aprende a se reinventar: ganho hoje por volta de R$ 2.000 por mês vendendo salpicão e empadão no condomínio da minha filha e faço faxina também –quando aparece, porque a faxina caiu bastante.”
A ausência da festa vai contribuir até para piorar a informalidade. A coordenadora do Muca (Movimento Unido dos Camelôs) conta que, em 2020, 16 mil ambulantes se cadastraram para trabalhar no Carnaval no Rio de Janeiro. Metade conseguiu obter, por meio de sorteio, uma licença para estar nas ruas.
“Para o Carnaval deste ano a prefeitura não abriu esse cadastramento. Com a crise, temos muito mais gente nas ruas trabalhando sem registro como camelô”, disse.
A Riotur, empresa de turismo do município, informa que publicará editais junto com a Secretaria de Cultura para “suplantar perdas financeiras dos profissionais envolvidos na cadeia produtiva do Carnaval”, como ferreiros, aderecistas, costureiras, intérpretes, carpinteiros e outros profissionais considerados essenciais para fazer o evento acontecer.
Em cidades do Nordeste, que têm a festa como principal vitrine dos setores de turismo e entretenimento, o cenário é de desolação.
Na Bahia, a estimativa é que existam pelo menos 100 trios elétricos dedicados ao Carnaval, e que estão parados neste momento.
Em Salvador, onde esses carros emblemáticos deixam as ruas tomadas, a estimativa da prefeitura é que a festa tenha, no ano passado, movimentado R$ 1,8 bilhão, em gastos como hospedagem, alimentação e serviços, gerando cerca de 215 mil empregos temporários em até 40 áreas de atuação.Em 2020, a cidade recebeu 850 mil turistas no Carnaval, segundo a Saltur, empresa de turismo da capital baiana.
Diretor da Central do Carnaval, empresa que atua na venda de abadás para blocos e camarotes, o empresário Joaquim Nery vê prejuízos em série neste ano. “É uma catástrofe para Salvador”, afirma.
Segundo ele, blocos e camarotes formam apenas a ponta mais visível da extensa rede de operações que atuam no festa baiana. Ele lembra que restaurantes, táxis, transportes por aplicativos e vendedores ambulantes vão ficar sem clientes.
A maioria dos blocos e camarotes fechou seus escritórios ou está trabalhando com uma estrutura mínima. Para manter algum fluxo de caixa, a Central do Carnaval adotou como estratégia vender abadás para 2022.
Dono de dois dos maiores trios elétricos de Salvador, o empresário José Barreto Góes afirma que o cancelamento será mais um baque para o setor de entretenimento, que está parado desde março do ano passado.
Ele diz que a última vez que seus trios foram para a rua foi no Carnaval de 2020, quando desfilou com artistas como Ivete Sangalo e Léo Santana. Desde então, estão parados e sem uso em um estacionamento na cidade de Alagoinhas (136 km de Salvador).
Mesmo com a crise, Barreto diz que optou por manter sua equipe fixa de 20 funcionários que trabalham diretamente com os trios elétricos, que inclui desde motoristas a engenheiros de som. O custo anual com a equipe é de R$ 320 mil.
“A gente vive um dilema porque, se demitir, você perde sua equipe. E não dá para abrir mão de profissionais que são altamente especializados”, afirma.
Além dos 20 funcionários fixos, os trios parados geram custos com manutenção. Pelo menos duas vezes por mês, as equipes fazem testes nos equipamentos para evitar possíveis danos por inatividade.
No centro do Recife, as lojas de fantasia, que costumam ficar lotadas no período pré-carnavalesco, estão completamente vazias. Os comerciantes contam que o movimento caiu em até 70%.
“Não tem saída. As fantasias estão todas no estoque. O que machuca mais é olhar nossos pequenos fornecedores, que vivem das roupas que produzem, sem perspectiva alguma”, conta Maria Isabel Moreira, dona de uma das lojas.
Sem Carnaval, ela diz que começou a migrar para decoração de festas infantis. “Estamos estimulando o uso de fantasias em festas de aniversários. Produzimos o que a pessoa deseja. É a lei da sobrevivência”, conta.
Robson Sena, dono de uma empresa que monta estruturas e palcos, deixou de faturar R$ 1 milhão. No Carnaval do ano passado, ele foi responsável pela montagem de nove palcos no Recife.
Diante da proibição, conta que está migrando para o setor da construção civil. “O impacto é enorme para as empresas que trabalham montando a estrutura para apresentação dos artistas. Estamos fazendo, agora, pequenas obras. Tive que migrar”, relata.
De acordo com informações da Aspeine (Associação Pernambucana das Empresas de Infraestrutura de Eventos), o impacto da não realização do Carnaval é da ordem de R$ 100 milhões. “Esta conta inclui o que apenas as 80 empresas associadas deixam de faturar neste período. Empregamos 5.000 funcionários diretos”, afirma.
Na capital paulista, a suspensão interrompe um momento de ascensão da folia. Os bloquinhos ganharam espaço nos últimos quatro anos e transformaram a cidade em um novo ponto turístico carnavalesco.
No ano passado, foram 15 milhões de foliões pulando em 678 blocos. A festa movimentou quase R$ 3 bilhões, segundo a Prefeitura. A permanência média dos turistas foi de dois dias, e o gasto médio durante a estadia, de R$ 648,19. “São Paulo é nosso maior emissor [de turistas], e como São Paulo apertou as medidas restritivas o movimento deve cair”, conta Alfredo Lopes, presidente do Sindicato dos Meios de Hospedagem do Rio de J aneiro.
As lojas paulistanas, que vendem fantasias e adereços para várias partes do país, sentem a retração com mais força. As vendas nas lojas da Abrakadabra Fantasias, que tem quatro unidades na capital paulista e duas no interior de São Paulo, caíram 90%.
A gerente da loja do bairro de Pinheiros, na zona oeste, Silvana Duque, conta que, imaginando uma queda na demanda por conta pandemia, a loja não fez estoque para o Carnaval. “Como já prevíamos, neste ano a gente quase não está tendo procura na loja”, afirma.
O comércio popular, como o da rua 25 de Março, é o mais afetado. Nos Armarinhos Fernando, que vende itens como enfeites, espuma, tinta e vuvuzelas, também não há procura de produtos que costumam atrair interesse dos foliões. O gerente Ondamar Ferreira diz que os clientes nem perguntam se tem item de Carnaval.
Quem trabalha na festa também foi afetado. Wallacy Vinicyos trabalhou nos últimos dez carnavais, mas ficou sem trabalho ao longo da maior parte de 2020 por conta das incertezas dos desfiles.
“Nós que trabalhamos com cultura tivemos que dar um jeito. Como eu sou cabelereiro, consegui retomar a profissão e obter uma renda. O auxílio emergencial também ajudou”.
Por causa do aumento no número de casos de Covid-19, São Paulo irá realizar os desfiles de escolas de samba em julho. Bentes, da CNC, afirma que essa transferência não vai ajudar. O planejamento do Carnaval precisa ocorrer com 10 meses de antecedência e, por causa das incertezas sobre a imunização da população, o setor de turismo prefere dedicar esforços para o Carnaval de 2022.
Para apoiar as atividades de blocos de rua de São Paulo, a Secretaria Municipal de Cultura irá realizar, de 12 a 28 de fevereiro, o evento virtual “Tô me guardando”, com 300 atividades.
O historiador Milton Teixeira, do Instituto Venturo, lembra que, em outros momentos, os governos tiveram dificuldade para interferir no Carnaval. Em 1912, a folia no Rio foi transferida de fevereiro para julho por causa da morte do Barão do Rio Branco, e os passistas pularam em fevereiro e em julho. No meio do surto de gripe espanhola, em 1919, ocorreu um Carnaval histórico.
“A ditadura militar tentou fazer o possível para acabar com o Carnaval de rua, e tinha até lei que botava em cana quem usasse máscara”, afirma. “É difícil mexer com festa popular.”
Como boa parte dos eventos carnavalescos no século 21 exigem autorizações do poder público, a expectativa é que, desta vez, os foliões vão ficar em casa.
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