“Como você está lidando?”, pergunta a médica Ana Cláudia Quintana Arantes, geriatra e especialista em cuidados paliativos. Em tempos de pandemia de coronavírus, a pergunta “tudo bem?”, costumeira em um cumprimento, nunca foi tão retórica. Neste momento em que o mundo contabiliza, dia a dia, o crescente número de infectados e mortos em decorrência da doença, um terço da população mundial está em casa em quarentena e muito se fala em perdas econômicas adiante, a médica contabiliza as perdas emocionais.

Especialista em cuidar de quem está muito próximo ao final da vida, ela já prevê que a humanidade passará por três tipos de luto. Além do luto real, das perdas objetivas, ela acrescenta o luto antecipatório —a percepção de que a morte está chegando. “Além disso, vamos ter um luto pela falta de consciência. Muitas pessoas vão se arrepender de não ter tido cuidado antes e vão pensar ‘eu poderia ter ficado em casa, poderia ter convencido as pessoas a ficarem em casa”, afirma. “Haverá arrependimento coletivo também”, aposta.

Segundo o msn, desde que a pandemia se instalou, o número de mortos já passaram de 210.000 ao redor do mundo e mais de 3 milhões de pessoas ficaram doentes. No Brasil, o mortos passam de 4.500 nesta segunda-feira. Há países, no entanto, que estão se mostrando mais eficazes em suas políticas de combate à doença, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, que realizam testagem em massa na população. Mas em outros lugares, os símbolos de luto e dor são os mais fortes desde a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, que começa a ver a diminuição de casos, mas ainda contabiliza duas centenas de mortos por dia, as imagens de caminhões transportando corpos para serem enterrados em outras regiões por causa do colapso dos cemitérios da Lombardia se tornaram a prova da agressividade da pandemia. Na Espanha, uma pista de patinação no gelo dentro de um shopping se transformou em um imenso morgue para receber os corpos. Necrotérios temporários, hospitais de campanha em campos de futebol, despedidas dos parentes feitas por meio de uma tela de celular, já que ninguém pode se aproximar de uma pessoa infectada. A pandemia do novo coronavírus que se alastrou por quase o mundo inteiro aponta para uma imensa cicatriz que será formada por cenas surreais e a sensação de um luto coletivo.

Para a médica, que é autora de dos livros A morte é um dia que vale a pena viver (Sextante, 2019) e Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020), o momento de uma pandemia é peculiar também sob o ponto de vista da morte. “Num cenário de pandemia, não há condição de dar sentido ao processo [da morte]. As pessoas vão morrer sozinhas, ninguém vai poder pegar na mão, pois as visitas são proibidas”.

A despedida também já está sendo solitária. No Brasil, os casos confirmados de óbitos pela covid-19 devem obedecer a um protocolo que prevê a não realização de velórios, os corpos devem ser enterrados com os caixões lacrados e a uma distância dos familiares, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. Por isso, além das mais de 4.500 pessoas que já morreram com a doença confirmada, até mesmo os casos suspeitos da doença, ou cuja morte se deu por para respiratória ou por razões não definidas, estão passando pelo mesmo processo.

A despedida está sendo privada até mesmo àqueles que não confirmaram ter o vírus no corpo. Quem perde um parente que mora longe também encontra dificuldades de transporte para chegar a enterros e despedidas. Há ainda quem está preso longe de casa, num contexto de queda drástica no número de viagens aéreas internas e externas. “A experiência da dignidade no meio disso tudo [da pandemia] está difícil de ser encontrada”, afirma Ana Claudia Quintana.No meio de previsões ainda tão nebulosas, a médica, enfim, responde à pergunta feita no início desta entrevista. “Como estou lidando? Ajudando a fortalecer as campanhas de solidariedade”, diz. “É o único jeito.”

Foto: NELSON ALMEIDA.