“Para a sociedade de Brumadinho, eu não me chamo Nayara mais, eu sou uma viúva da Vale. A gente perdeu até a identidade”, conta Nayara Cristina Dias Porto Ferreira, 28, que perdeu o marido no rompimento da Barragem 1, em Brumadinho (MG), há quase um ano. Ela faz parte de um grupo de mulheres que hoje chefiam e sustentam suas famílias sem a possibilidade de dividir as tarefas com seus maridos.
Sem a renda dos homens, substituída pelo auxílio emergencial da Vale (no valor de um salário mínimo mensal) e pela pensão do INSS, algumas se tornaram donas do próprio negócio para ter uma renda. Dos 259 mortos do desastre já identificados, 53 são mulheres e 206 são homens —que deixaram uma legião de viúvas para trás.
Se pensamos também nas mães e nas irmãs, desenha-se uma tragédia essencialmente feminina. As viúvas ouvidas pela Folha de S.Paulo, dizem acreditar que a tristeza se aloja de forma diferente nas mulheres, por serem mais sensíveis e apegadas às famílias. “Tudo pesa mais em cima de mulher. Aquelas que já arrumaram outro namorado ou outro marido são julgadas. E ninguém repara isso nos homens, se já estão com outra mulher. É como se a gente não tivesse liberdade”, diz Nayara.
“São muitas viúvas. E novas. Nunca pensei que estaria viúva aos 27 anos. Eu casei para ficar casada a vida toda. E começar de novo é muito difícil”, completa.
No grupo de WhatsApp “Nossos Heróis”, ela e outras 27 mulheres que perderam os maridos compartilham informações sobre como requerer direitos à Vale e à Justiça. Nayara é uma das diretoras da associação de familiares e atingidos pelo rompimento (Avabrum) e orienta as colegas com burocracias.
Na semana passada, ela cobrou da Vale um táxi que lhe foi negado para ir ao psiquiatra. A mineradora disse que foi um erro e que os carros estão à disposição dos familiares. Sem o marido que a levava para todos os lugares, Nayara está tirando carteira de habilitação. Essa não foi a única mudança desde que Everton Lopes Ferreira, 32, operador de equipamentos na mina da Vale, morreu.
Ela trocou a casa, cheia de lembranças do casal, por um apartamento. “É mais seguro. Nós, viúvas, estamos muito expostas. O pessoal acha que estamos milionárias”, diz Nayara, referindo-se às indenizações pactuadas com a Vale por acordo com o Ministério Público do Trabalho. O acordo prevê R$ 700 mil pagos individualmente para cônjuges, pais e filhos das vítimas e R$ 150 mil para irmãos.
Também estabelece danos materiais compatíveis com salário e gratificações dos empregados, num valor mínimo de R$ 800 mil, além de plano de saúde para cônjuge e filhos e auxílio para pagamento de escola. Nayara, porém, não aderiu ao acordo e entrou com ação para buscar compensação melhor.
A princípio, ela não foi reconhecida como dependente do marido, apesar de ser casada no civil. Como Everton tinha uma filha de 12 anos, os valores emergenciais pagos pela Vale foram direcionados à mãe da criança. Só dois meses mais tarde é que Nayara também foi ressarcida.
“Fui totalmente lesada. Fiquei sem marido e sem um real no bolso”, diz. A maior parte da renda vinha dele. Desempregada, Nayara que é química, atendia clientes num salão de beleza improvisado em casa. Agora, alugou um espaço para o salão. Nayara quer um emprego em sua área, mas não agora. “Não tenho cabeça para focar em muita coisa, minha mente ainda dá umas falhadas”, conta.
O marido foi identificado em 7 de fevereiro. “Tirou meu chão. Ele era minha alegria. Não tenho graça para nada.” Muitos funcionários da Vale ou de terceirizadas que foram engolidos pela lama em segundos estavam na casa dos 30 e poucos anos, com filhos pequenos e muitos planos. Ana Paula dos Santos Assis, 35, realizou um dos sonhos do marido há uma semana, mas sem a presença dele.
Abriu um restaurante na comunidade Córrego do Feijão, que é vizinha à lama e onde 27 dos 600 moradores morreram no dia 25 de janeiro de 2019. “Não sei se vai dar certo. Era nosso sonho ter um negócio. Eu fiz isso pra ocupar minha cabeça. Pra juntar dinheiro e educar minha filha”, diz. Trabalham com ela a filha de 17 anos e mais quatro mulheres da comunidade.
Por volta de 12h30 de sábado (18), chegaram várias picapes ao local. O movimento vem dos funcionários de empresas contratadas pela Vale para ações de reparação —a extensão da lama virou um canteiro de obras, com homens e caminhões indo e voltando. Ana Paula era técnica de segurança em outra mineradora da região, mas pediu demissão em dezembro.
“Eu estava muito estressada. Não sou como era antes, estou mais lerda. Minha cabeça não está boa.” O restaurante é uma tentativa de recomeçar. “Morar sozinha é difícil, eu tinha uma pessoa para me dar proteção. Eu finjo que não aconteceu. As roupas dele, os sapatos, está tudo lá.” Ao contrário de outras três viúvas que se mudaram para mais longe, ela se mantém no Córrego do Feijão.
“Acho que a melhor maneira de preservar a memória da pessoa é cuidando do que ela construiu, e levamos cinco anos para construir nossa casa, batalhando, sempre juntos”, diz. “Prefiro quebrar tudo do que entregar para quem matou ele. Eu tenho ódio mortal da Vale”, diz Ana Paula sobre a possibilidade de que a mineradora compre as casas de quem deixou o Feijão. Já Natália Silva Leotério, 30, não conseguiu morar a duas ruas de onde o marido foi enterrado e se mudou para o centro de Brumadinho.
Ela morava de aluguel e agora a Vale paga o aluguel na nova casa. “Eu não estava aguentando. As minhas meninas não estavam bem. A gente viu helicópteros e corpos chegando”, diz ela, relatando as cenas que dominaram o Córrego do Feijão por semanas após a tragédia. A filha de 10 anos mal comia e dormia. A de 2 anos pergunta pelo pai, Reinaldo Fernandez Guimarães, 31, identificado quatro dias após o rompimento. Ele trabalhava na Pousada Nova Estância, engolida pela lama sem o aviso de sirenes.
Natália é dona de casa, depende do INSS e do auxílio emergencial da Vale —que ela reclama que atrasa em alguns meses. Ela não aderiu ao acordo de indenização e questiona na Justiça o fato de o valor proposto para trabalhadores da pousada ser menor. “A Vale não vai estipular o valor e eu vou aceitar. Não tem valor no mundo que traga ele de volta. Eu não aceito isso”, diz.
A viúva, que diz tomar muitos remédios, sente falta da ajuda do marido com as filhas. Ele fazia compras, levava na escola e ensinava o dever de casa. “Eu achava que eu ia morrer antes, não ele. Ele tinha saúde. É como se eu estivesse presa no dia 25, atolada na lama até hoje.”