As Nações Unidas estimam que o tráfico humano é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, movimentando ao menos US$ 32 bilhões por ano. Na maior parte dos casos, as vítimas são usadas em trabalhos forçados, como servidão doméstica e trabalho sexual, além de sofrerem abusos e ameaças.
No Brasil, 34 vítimas do crime foram resgatadas em 2024, e 148 inquéritos foram instaurados relacionados ao tema, segundo a Polícia Federal. O número de investigações abertas cresceu 43% em relação a 2023, quando houve 103 inquéritos da corporação.
Em três anos, ao menos 1.473 brasileiros foram vítimas de tráfico internacional de pessoas, segundo os Creas (Centros de Referência Especializados de Assistência Social), que consideram o período entre 2021 e 2023. Estimativas globais, divulgadas pela ONU (Organização das Nações Unidas), apontam que 70% das vítimas são mulheres e meninas.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecida como Convenção de Palermo, define o tráfico de pessoas como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força, ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou de dar, ou receber pagamentos, ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”.
Relato de vítima
O R7 conversou com uma vítima de tráfico internacional. Vitória (nome fictício) recebeu uma proposta para trabalhar como bailarina nos Estados Unidos e não desconfiou que a proposta pudesse ser um esquema ilegal por já ter atuado na profissão em outros países e ter pesquisado a empresa que divulgou o serviço.
Devido à baixa oferta de empregos na área durante a pandemia, Vitória disse que essa foi uma das primeiras propostas que surgiu para ela. “O trabalho era real, mas as coisas não foram muito como o esperado. Cheguei aqui e sofri assédio, abuso, agressão no trabalho”, lembra. A dançarina afirma que, ao se deparar com a situação, pediu para voltar ao Brasil, mas os responsáveis pela contratação a impediram.
“E eu não consegui identificar, eu nem sabia que isso seria tráfico. A ideia que a gente tem de tráfico humano é uma ideia de que vão vender a gente, que vão escravizar a gente, e não foi isso. Hoje, depois de muita pesquisa, depois ler muito sobre, é muito mais abrangente do que parece. É um crime que acontece todos os dias. As pessoas chegam nos lugares, e não é aquilo que elas imaginam”, diz.
Apesar das reclamações e solicitações para saída, os responsáveis negavam os pedidos e ameaçavam acionar a polícia para manter as vítimas no local. Sem conhecimento das leis do país e de tráfico de pessoas — como a que diz que estrangeiros nos EUA podem solicitar vistos voltados para proteção de imigração às vítimas de formas severas de tráfico de pessoas —, Vitória explica que tinha medo de ser deportada.
Como parte do emprego, ela conta que fazia diversas viagens para apresentações em diferentes cidades. Por não saber dirigir e não dominar a língua inglesa, Vitória conta que dependia do proprietário da empresa para conseguir sair do local. Na época, o deslocamento era feito com um trailer.
“Eu não dirijo, e a gente não tinha carro. O carro que existia era do dono, então para a gente sair e fazer alguma coisa, tinha que recorrer a ele, e ele que era o problema. Muitas vezes, no início, ele levava a gente para fazer as coisas, mas a situação começou a ficar tão ruim que eu me lembro de ficar doente, e para eu poder ir aos lugares teria que pedir a ele, e ele jogava coisas na minha cara. Para a gente ir ao mercado comprar água, para fazer qualquer coisa, porque a gente não tinha cartão de crédito. A gente não tinha nada. A gente não conseguia recorrer nada”, detalha.
O resgate
Vitória conseguiu escapar com a ajuda de policiais. Na ocasião, o proprietário da empresa chamou os agentes como uma forma de assustá-la após um episódio de agressão. À polícia, o homem teria alegado que a dançarina era uma funcionária que estava correndo atrás dele, tentando atacá-lo. Segundo a jovem, a confusão começou após ela gravar o momento em que o dono a agredia.
“No momento que ele vem para cima de mim, eu estava com celular filmando. Então, eu consegui pegar o início da agressão, e foi a minha sorte, porque ele chamou a polícia, e vieram três policiais homens para cima de mim. Eu estava morrendo de medo dele, porque ele tirou o celular de mim no primeiro momento, mas consegui recuperar. Ele estava querendo apagar este vídeo no meu celular e não queria que eu tivesse contato com ninguém. Então, consegui recuperar meu celular e me tranquei dentro da cabine do trailer. Eu falei que eu não ia sair, e ele chamou a polícia.”
Quando as autoridades chegaram ao local, Vitória explicou o ocorrido e mostrou o vídeo da agressão. De acordo com ela, o homem foi preso no momento, mas liberado 24 horas depois por falta de provas. Devido à situação, a jovem foi levada a um abrigo na região.
“Eu fiquei em um abrigo. Fiquei bem assustada porque nunca estive em um abrigo na minha vida. Eles tiraram meus remédios. Aí pedi para que eu saísse, e me deram uma passagem para eu sair de lá. Eu não tinha para onde ir e estava tão desesperada. Só queria sair de lá e fui para a rua. Fiquei sentada na rua, em uma estação de ônibus. Cheguei a colocar o meu caso em uma rede social, e aquilo viralizou em algum momento. A ajuda que tive foi da comunidade brasileira. Nunca tive ajuda nenhuma da polícia ou consulado”, garante.
Com a repercussão do caso de Vitória nas redes, uma brasileira ofereceu abrigo para ela durante três meses. Ela explica que a mulher, residente nos Estados Unidos há mais de 10 anos, se solidarizou por saber de jovens que haviam sido vítimas do mesmo homem.
“Eu cheguei na casa dela, estava muito perdida, com muito medo e sem saber o que fazer. Foi ela que sentou, conversou comigo e me explicou que as coisas não são assim. A polícia não vai chegar e te deportar. Isso é crime, você tem que reportar, você tem que procurar um advogado, e aí que eu fui começando a entender”, disse.
Com o trauma vivido, Vitória diz que ainda está abalada psicologicamente, ainda mais porque ela quase foi traficada novamente. A dançarina afirma que uma brasileira a ofereceu uma oferta de trabalho doméstico, mas ela negou por avaliar que a atividade poderia se enquadrar como análoga à escravidão.
“Eu sinto que tenho muita irritabilidade, muito estresse, em qualquer situação. Por menor que seja, ela me afeta muito mais do que afeta as outras pessoas. Você é traficado e está naquele desespero de precisar sair disso, e aparece outra pessoa falando que vai te ajudar, mas essa outra pessoa tenta também fazer o mesmo com você.”
Como denunciar
Para denunciar casos de tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, tráfico de mulheres e outros crimes semelhantes às autoridades brasileiras, as opções são:
• Disque Direitos Humanos – Disque 100: o Disque Denúncia Nacional é um serviço de discagem direta e gratuita disponível para todo o Brasil.
• Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180: coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, tem como finalidade receber denúncias, orientar e encaminhar para os órgãos competentes os casos de tráfico de pessoas e de cárcere privado.
• Serviço de Repressão ao Tráfico de Pessoas da Polícia Federal no e-mail: [email protected]
Caso esteja no exterior, o governo orienta que a pessoa busque a Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores. Os endereços dos consulados e embaixadas podem ser consultados no site do Itamaraty.
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