Na manhã do último dia 23, uma estudante de 17 anos foi morta e outras três pessoas ficaram feridas após um ataque a tiros dentro da Escola Estadual Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo. Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), um adolescente de 16 anos, também aluno, entrou armado no colégio e efetuou os disparos.
Sete meses antes, numa escola estadual da Zona Oeste, quatro professoras e um aluno foram esfaqueados por um adolescente de 13 anos, também estudante. Após esse caso, Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu psicólogos em todas as escolas do estado, o que só aconteceu mais de 5 meses depois.
A Secretaria Estadual da Educação voltou a dizer que contrataria mais profissionais após o atentado na escola em Sapopemba.
-Apesar dos esforços, no entanto, especialistas ouvidos pelo g1 disseram que apenas psicólogos não suficientes para que haja, de fato, uma mudança efetiva no ambiente escolar;
-Eles avaliaram que não há soluções imediatistas e que as ações necessárias são complexas;
-Também disseram que falta esforço do governo em promover políticas públicas de qualidade;
-Além disso, apresentaram medidas que podem ser adotadas pelas autoridades competentes; confira:
Alunos precisam ser ouvidos
Para Luciene Tognetta, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral, da Unesp e da Unicamp, é urgente que se modifique os espaços de participação dos jovens nas escolas.
“O sofrimento emocional que os nossos alunos estão vivendo hoje, que faz com que eles se sintam excluídos, menosprezados, diminuídos, também é algo que, apesar de não ser novo, se intensificou depois da pandemia. Eu preciso da urgência da qualidade dessas ações para a escola”, apontou.
No final de 2019, meses após o ataque que terminou com dez pessoas mortas na Escola Raul Brasil, na Grande São Paulo, a doutora em psicologia escolar participou da aplicação do “Questionário do Clima Relacional Escolar”, pesquisa que ouviu as demandas de quase 950 mil estudantes da rede estadual de ensino. Entre os resultados:
-60 a 75% dos alunos se consideravam espectadores de bullying
-30 a 50% dos alunos haviam sido alvo de bullying
-20 a 35% dos alunos foram autores de bullying
-25% dos alunos diziam sentir medo dos seus pares
-8% dos alunos diziam sempre sentir medo de seus pares
Segundo Luciene, o governo de São Paulo não fez nada de efetivo com os dados obtidos.
“A política pública era voltar esses dados para a cada escola e cada escola organizar seu plano de ações a partir do diagnóstico da sua realidade. Infelizmente, eles [governo] podem, inclusive, dizer que a pandemia atropelou tudo. Não é só a pandemia que a gente pode dizer que foi o motivo de atropelar uma política pública. Infelizmente, não vai para frente porque demanda o esforço contínuo das pessoas que estão à frente de uma secretaria”, afirmou a pesquisadora.
Em nota, a Secretaria da Educação disse que o questionário foi um dos pilares da criação do Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar (Conviva-SP) e que intensificou ações ligadas à educação antirracista, convivência em sociedade, combate ao bullying e ao cyberbullying e a cultura de paz. (leia íntegra abaixo)
Dentro das políticas públicas que envolvem a estrutura de uma transformação da escola, está a participação efetiva dos estudantes, pontua a pedagoga.
“Um trabalho baseado em pesquisa que mostra que, se são os alunos que mais conhecem os problemas dos alunos, treiná-los a ajudar, observar, instrumentalizá-los para poder acolher e ajudar os outros alunos, também é uma das estratégias mais eficazes que a gente tem conseguido para vencer os problemas de violência nas escolas do mundo”, explicou Luciene.
Mais profissionais para uma equipe multidisciplinar
Segundo Anna Helena Altenfelder, presidente Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitáriado (Cenpec), prevenir eventos de violência em escolas é um problema complexo — e, para isso, nem sempre há soluções, muito menos soluções simples.
“A primeira grande reflexão que pode ser é que estamos falando de uma de uma violência na escola, mas uma escola que está inserida em uma sociedade. Esses ‘casos isolados’ que a gente está vendo, na verdade, fazem parte de um todo maior, que é uma sociedade violenta”, apontou.
Para a pesquisadora, não adianta “jogar nas costas” dos psicólogos a responsabilidade de evitar que tragédias aconteçam: “Eles vão chegar, atender, mas não terão condições de desenvolver um trabalho – até porque não é especificidade dele trabalhar esse coletivo”.
Anna afirma que o trabalho de enfrentamento da violência nas escolas é coletivo e pedagógico. “Os psicólogos podem ajudar as escolas? Sim, sem dúvida”, diz ela. Mas “é superimportante pensar em políticas intersetoriais, criar uma rede de proteção que envolva serviços de saúde, assistência social, Conselho Tutelar, as várias instâncias que são dedicadas à infância e juventude. Me preocupa muito, por exemplo, a ideia de que seguranças nas escolas, policiais nas escolas, vão resolver a situação”, completa.
“As escolas paulistas sofrem com uma desigualdade de condições em termos de funcionário. É preciso olhar com cautela para este quadro de funcionários. Preciso entender os espaços que mais preciso de profissionais que façam um trabalho articulação com a rede de proteção em que a escola está inserida”, apontou também Luciene Tognetta.
“É o trabalho das pessoas que a escola precisa ter para acompanhar essas crianças submetidas a violências ou que submetem os outros à violência. É estar junto, poder se reunir, é entrevistá-lo. Toda semana, não uma vez. É ensinar a família a olhar para este menino que só tem, muitas vezes, os colegas da rede social”, apontou Luciene.
Melhor remuneração
Para Ana Aragão, psicóloga e professora da Faculdade de Educação da Unicamp, a remuneração dos professores é ponto fundamental para a transformação do cenário nas escolas. Segundo ela, o salário dos educadores deveria ser de R$ 5 mil para uma jornada de 20 horas semanais.
“Só que isso está muito longe de acontecer”, enfatizou a docente. A realidade acompanha a fala de Ana: em São Paulo, professores que optaram pelo programa Nova Carreira têm salário-base de R$ 5 mil por 40 horas semanais, ou seja, o dobro do tempo apontado pela pesquisadora.
“A remuneração adequada vai atrair mais pessoas, a gente a gente vai ter a possibilidade de ter uma formação com mais profundidade, de profissionais bem formados e, claro, com pessoas que tenham muito interesse em trabalhar com a educação”, disse.
“Acho que o que tem afastado muito os estudantes de licenciatura de ir trabalhar como professor é o fato do que tem acontecido nas escolas. Isso não só agora, mas nesses últimos 4 anos, marcados por um negacionismo da ciência, pelo descrédito nas pesquisas. A universidade em si acabou perdendo muito do prestígio, a universidade como um local de produção de ciência”, lamentou Ana.
“É fato que há um despropósito e um desmerecimento dessa categoria. Cada vez mais evidencia uma queda na procura por pessoas que se formam e, claro, se têm a possibilidade de escolher outros segmentos com melhores condições de trabalho e com melhores rendimentos, vão fazê-lo”, destacou Luciene Tognetta.
Delegacias especializadas em infância e juventude
O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e juventude, contou que São Paulo é um dos poucos estados do país que não possui delegacias especializadas da criança e do Adolescente.
“Essas delegacias poderiam investigar os atos infracionais em escolas. Deveriam existir em todas as localidades, como delegacias seccionais de polícia. Devem ter policiais com formação especializada em direitos da criança e do adolescente e equipes multidisciplinares com psicólogos e assistentes sociais”, destacou o ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Segundo ele, essa divisão da polícia deveria ter capacidade de apuração de crimes cibernéticos envolvendo crianças e adolescentes, já que, em muitos casos, os autores de ataques participam de grupos extremistas na internet.
“Não basta a escola ou os pais e mães fazerem boletins de ocorrência. Os casos precisam ser investigados. Por trás de cada situação, existem outras situações peculiares e complexas que precisam ser tratadas. As soluções devem ocorrer por meio de atendimentos sociais e políticas públicas”, afirmou Ariel.
Mudança na grade curricular das escolas
Luciene Tognetta afirmou que a grade curricular das escolas não pode ser “a mesma do que 30 anos atrás”. Para ela, os responsáveis pelas políticas educacionais devem pensar na inserção de temáticas relacionadas, por exemplo, à ciberconvivência, extremismo, regulação da internet, acesso a armas, violência de gênero, racismo, machismo, xenofobia e diversas formas de preconceito.
“Como é que a gente pode pensar que, na adolescência, esses jovens têm acesso a conteúdos extremistas e essas discussões, esses temas, não são temas que são discutidos em sala de aula? Que tipo de trabalho está sendo feito, quais momentos nós temos abertos na escola para discutir essas questões? Um dia no mês, no final da semana, no final da aula?”, questionou.
“Repensar o currículo significa planejar ações de cotejamento a cada um dos pontos que são mais frágeis do cotidiano da escola. É por isso que planejar essas ações precisa ser pela comunidade escolar”.
No mesmo raciocínio, Ariel de Castro disse que as escolas precisam adotar em seus currículos matérias relacionadas à cultura de paz, tolerância, cidadania e direitos humanos para o enfrentamento aos discursos e incitações ao ódio.
Sistema nacional de educação
Anna Helena Altenfelder defende que o Brasil tenha um sistema nacional de educação nos moldes do Sistema Único de Saúde.
“As escolas sozinhas não têm condições de enfrentar esse grande desafio. É preciso pensar em ações do nível no nível da Secretaria. As escolas precisam ser apoiadas tanto com recursos financeiros quanto técnicos das secretarias municipais, estaduais e do próprio Ministério da Educação”, afirmou.
“Precisamos instaurar no Brasil um sistema nacional de educação, para ver como os entes federados – União, estado e município – podem colaborar para enfrentar uma situação. Esse sistema já faz parte da Constituição, é meta do plano nacional de educação, mas ele não existe. Ele regula exatamente o papel de cada um dos entes federados e a forma de cooperação”, contou.
“Na saúde, temos o SUS, que faz é exatamente isso — coordena para que a saúde possa chegar em todos os municípios. Como a gente teria enfrentado a pandemia sem o SUS? Seria impossível. Não temos o equivalente ao SUS na educação”.
“Esse foi um dos motivos pelos quais as escolas sofreram tanto na pandemia. O MEC ficou omisso e não tinha nada que regulamentasse o papel oficialmente, o que era responsabilidade de um e de outro, o que um consegue fazer sozinho… Um sistema nacional de educação ajuda a enfrentar os grandes desafios que o país vem encontrando para a educação”, pontuou Anna.
Restrição de armas
O advogado Ariel de Castro também afirmou que o Brasil precisa de uma política mais eficiente de acesso às armas.
“A restrição é necessária, já que o governo federal anterior promoveu amplo acesso ao armamento. Entendo que o acesso às armas deve se restringir aos agentes da segurança pública”, disse.
O número de pessoas com certificado de registro de armas de fogo aumentou quase sete vezes durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com base em informações do Exército, e levam em consideração registros para atividades de caçador, atirador desportivo e colecionador (CAC).
A publicação aponta que:
-Em 2018, antes de Bolsonaro assumir, o número de pessoas com registros CAC era de 117,5 mil. Ou seja, 56 brasileiros a cada 100 mil possuíam licença para armas.
-Agora, há 783,4 mil registros. Isso quer dizer que, a cada 100 mil pessoas, 386 têm a autorização.
-Este número mais recente de 2022 representa uma alta de 37% em relação a 2021.
-Na prática, isso quer dizer que o Brasil ganhou mais de 211 mil certificados de registros de armas em um ano.
O que diz o governo
Em nota, a atual gestão diz que tem atuado para aprimorar o programa de Melhoria da Convivência Escolar (Conviva), iniciado em 2019, e ampliar as ações de segurança no entorno das comunidades escolares.
Veja a íntegra da nota:
“O trabalho integrado entre as secretarias da Segurança Pública e da Educação permitiu que mais de 660 ataques, sendo 165 só na região metropolitana de São Paulo, fossem impedidos desde abril deste ano.
No âmbito escolar, além das ações em sala de aula com a aplicação de conteúdo antirracista, de combate ao bullying e a cyberbullying, houve o reforço no atendimento psicológico à comunidade escolar. Atualmente, 550 psicólogos estão disponíveis para atendimento nas unidades da rede, junto aos professores orientadores de convivência (POCs), atrelados ao Conviva. Em 2024, a Seduc vai triplicar o número desses profissionais. A seleção está em curso. A pasta também promoveu a contratação de 1.000 vigilantes para a atuação nas unidades escolares da capital, litoral e interior do estado.
Paralelamente, a SSP também intensificou o trabalho da Ronda Escola e, desde abril, disponibilizou o Botão do Pânico no aplicativo da corporação para a utilização de emergência na escola. O botão permite contato direto com o Centro de Operações Policiais Militares (Copom), da Polícia Militar, e assim que acionado, passam a ser prioritários para a PM, sob qualquer sinal identificado de insegurança.
Importante destacar também que o Estado de SP já conta com 13 Delegacias da Infância e Juventude (Dijus), localizadas em cidades polo das Regiões Administrativas e 2 delegacias especializadas na Divisão de Proteção à Pessoa do DHPP, sendo uma delas a de Repressão aos Homicídios Praticados Contra Criança e Adolescente.
Além disso, as 140 Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) em todo o Estado também atendem crianças e adolescentes vítimas de violência ou abusos, com acolhimento e atendimento especializado. Além disso, todos os distritos policiais de São Paulo são capacitados a acolher essas vítimas.”
Foto: Reprodução Google.