Estudo divulgado nesta segunda-feira, 21, na plataforma medRxiv aponta que quando a cidade de Manaus (AM) vivenciou o pico da epidemia de covid-19, em meados de maio, aproximadamente 46% da população local já havia contraído o SARS-CoV-2. Um mês depois, o percentual de infectados teria atingido 65% e, nos dois meses seguintes, teria se estabilizado em torno de 66%.
Na avaliação dos autores, essa taxa de infecção “excepcionalmente alta” sugere que a imunidade de rebanho pode ter contribuído significativamente para determinar o tamanho final da epidemia na capital amazonense.
“Ao que tudo indica, a própria exposição ao vírus levou à queda no número de novos casos e de óbitos em Manaus. No entanto, nossos resultados indicam uma soroprevalência bem mais alta do que a estimada em estudos anteriores, diz Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenadora da pesquisa – conduzida com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Segundo o msn, as conclusões apresentadas no artigo – ainda sem revisão por pares – baseiam-se em uma combinação de modelagem matemática e análises sorológicas feitas em amostras de sangue doado à Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas (Hemoam) entre os meses de fevereiro e agosto.
“Selecionamos amostras de mil doadores em cada mês e analisamos a presença de anticorpos contra o SARS-CoV-2. Em seguida, fizemos uma série de correções nos resultados por meio de modelagem matemática”, conta à Agência Fapesp o primeiro autor do estudo, Lewis Buss, mestrando no Instituto de Medicina Tropical e no Departamento de Medicina Preventiva da FM-USP.
Esse tipo de análise está sujeito a uma série de vieses que precisam ser compensados, explica Buss. Um deles é o fato de os doadores de sangue serem, de modo geral, mais jovens e saudáveis (assintomáticos) do que a média da população. Além disso, no caso específico de Manaus, há também uma representatividade maior do sexo masculino.
Outro ponto considerado pelos pesquisadores foi a sensibilidade do teste sorológico usado, estimada em 85% para indivíduos assintomáticos ou com doença leve (a taxa de falso negativo, portanto, pode chegar a 15%). O ajuste-chave, porém, foi o que buscou corrigir o declínio natural da soroprevalência contra o SARS-CoV-2 – algo que tem sido observado em inquéritos sorológicos feitos em diversos países.
“Algo que ficou evidente em nosso estudo – e que também está sendo mostrado por outros grupos – é que os anticorpos contra o SARS-CoV-2 decaem rapidamente, poucos meses após a infecção. Isso está claramente ocorrendo em Manaus, o que mostra a importância de fazer medidas seriadas para entender a evolução da doença”, afirma Buss.
A soroprevalência bruta encontrada na pesquisa, ou seja, sem qualquer tipo de correção, variou de 0,7% em março, para 5,5% em abril, 39,9% em maio, 46,3% em junho, 36,5% em julho e 27,5% em agosto. Com os ajustes do modelo matemático, porém, os números estimados foram respectivamente: 0,7%, 5%, 45,9%, 64,8%, 66,1% e, novamente, 66,1%.
Análise de amostras em São Paulo
Estratégia semelhante foi adotada para o município de São Paulo, onde os pesquisadores analisaram amostras de sangue doado na Fundação Pró-Sangue entre fevereiro e agosto. Também nesse caso foram selecionadas mil amostras por mês e, além disso, foi adotado um critério de cotas geográficas para dar representatividade a moradores de todas as regiões da cidade.
A soroprevalência bruta encontrada na capital paulista variou de 0,9% em março para 3% em abril, 5,3% em maio, 11,9% em junho, 9,6% em julho e 12,1% em agosto. Após os ajustes do modelo os números foram respectivamente: 0,8%, 3,1%, 6,9%, 16,1%, 17,2% e 22,4%.
“As duas cidades têm curvas epidemiológicas muito diferentes e é muito difícil explicar o porquê apenas com base nos dados sorológicos”, diz Buss. “Talvez a informação nova é que a soroprevalência já era alta em Manaus quando os óbitos começaram a cair, o que sugere a contribuição da imunidade coletiva. Em São Paulo, por outro lado, a soroprevalência é bem mais baixa e a curva, mais achatada. É provável, portanto, que outros fatores tenham influenciado a queda no número de novos casos na capital paulista”, avalia.
Ester destaca que após atingir o pico de óbitos, entre maio e junho, a capital paulista entrou em uma espécie de platô. “Ao contrário do observado em Manaus, por aqui a queda está ocorrendo lentamente e os dados de agosto estão semelhantes aos do começo de abril. Mas hoje vemos muito mais pessoas usando máscaras e, embora o comércio tenha reaberto, a mobilidade ainda está restrita e as escolas permanecem fechadas, bem como os cinemas e teatros. É possível que esses fatores tenham segurado o crescimento da doença por aqui”, diz. “Vale ressaltar que caso a curva fosse semelhante à de Manaus São Paulo teria tido uma mortalidade três vezes maior”, alerta a pesquisadora.
Atualmente, o grupo coordenado por Ester está conduzindo análises sorológicas com amostras de doadores do Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Recife (PE), Fortaleza (CE), Curitiba (PR), Belo Horizonte (MG) e Campo Grande (MS). Os resultados serão divulgados em breve.
“Trabalhar com dados de bancos de sangue nos permite mensurar a soroprevalência de uma determinada doença de forma mais rápida e barata do que os estudos que vão de porta em porta coletando amostras”, diz.
No entanto, ressalta a pesquisadora, a estratégia tem suas limitações, sendo a principal delas a diferença de perfil entre os doadores de sangue e a população geral da cidade, o que requer cuidados para tornar a amostragem representativa.
“Quando começamos a pesquisa em São Paulo, com o auxílio da Fapesp, uma das primeiras coisas que fizemos foi estudar a geografia dos doadores de sangue para poder estratificar melhor as amostras. Com os recursos da iniciativa Todos Pela Saúde (do Itaú Unibanco) e os kits de sorologia doados pela farmacêutica Abbott, conseguimos expandir as análises para as demais capitais”, conta.
“Ao comparar Manaus e São Paulo vemos curvas epidemiológicas muito diferentes, apesar de as políticas públicas para conter a disseminação da doença terem sido adotadas em datas próximas e o índice de isolamento social não ser radicalmente diferente nos dois lugares. O próximo passo é analisar as curvas das outras cidades para, em seguida, criar modelos que nos permitam entender quais fatores pesaram mais em cada caso”, diz Ester.
A pesquisa tem sido conduzida no âmbito do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), financiado por Fapesp, Medical Research Council e Fundo Newton (os dois últimos do Reino Unido).
Foto: Bruno Kelli.