A menina capixaba de dez anos vítima de seguidos estupros não precisou só viajar a outro estado para fazer valer o seu direito a um aborto. Ela também teve que se esconder no porta-malas de um carro para entrar no hospital no Recife (PE) enquanto o médico e diretor da unidade, Olimpio Moraes, atraía para o portão principal os fanáticos religiosos e políticos que se dividiam e bloqueavam todas as entradas para impedir a garota de realizar o procedimento.
A perseguição veio desde o aeroporto, onde anotaram a placa do veículo onde estava a criança, conta Olimpio, o obstetra pernambucano que desde 1996 faz abortos pelo SUS e dirige o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), o primeiro a realizar abortos legais no Norte-Nordeste. São cerca de 50 desses procedimentos por ano, entre 30 e 40 relacionados a estupros.
“Esse era um caso diferente. Quando eu soube do vazamento dos dados, fui pro hospital e quando cheguei estava aquela confusão. Ficamos com medo de ela não conseguir entrar. Criamos uma distração para tirar a atenção e o carro passar escondido. Ninguém viu”, conta o médico, que ouviu gritos de “assassino”, “aborteiro”, “demônio”, “por que o senhor não mata seus filhos?”.
A enfermeira obstétrica Paula Viana definiu a situação como “operação de guerra”. “A gente parou um pouco antes, elas trocaram de lugar, entramos assim, [com elas no porta-malas], para não serem filmadas”, afirma.
Uma das coordenadoras do Grupo Curumim, que atua na área de direitos sexuais e reprodutivos há mais de 30 anos em Pernambuco e desenvolve trabalhos com o próprio Cisam, ela acompanhou a criança durante o processo.
Segundo a Folha de S.Paulo, a polícia chegou depois que a garota já tinha entrado na unidade, mas conseguiu impedir que os cerca de 200 ativistas católicos e evangélicos, liderados por parlamentares conservadores, invadissem o hospital no domingo (16). O bloqueio dos grupos religiosos atrapalhou inclusive a chegada de grávidas em trabalho de parto à maternidade.
Quem divulgou o nome da menina e qual unidade faria o procedimento foi a extremista bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, que pode ser investigada por violações à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e ao Código Penal, assim como o funcionário público que vazou a informação.
Olimpio já foi alvo de ataques do tipo em 2009, quando religiosos fizeram vigília em frente ao Cisam para impedir um aborto de gêmeos de uma menina de nove anos estuprada pelo padrasto. Ele, a equipe médica e a família da garota foram excomungados pela Diocese de Pernambuco.
O pernambucano, criado em lar cristão, já tinha sido excomungado três anos antes apenas por apoiar a iniciativa disponibilizar pílulas do dia seguinte em postos de saúde no Carnaval recifense.
Desta vez, o arcebispo de Olinda e Recife, dom Antonio Fernando Saburido, disse lamentar “a morte da menina de cinco meses. O mandamento destacado por Jesus no texto que citamos inicialmente foi mais uma vez desrespeitado.”
Mas Olimpio afirma que “nunca tinha visto algo parecido nesses anos todos” e acha que as cenas de domingo refletem a polarização política.
“Fiquei assustado. O ódio e a intolerância conseguiram se organizar publicamente. É reflexo da força político-partidária que os movimentos religiosos têm tido ultimamente. Essas forças já existiam, mas não tinha projeção dentro do Estado, não faziam política pública”, diz.
“As pessoas acham normal xingar, violar, isso é muito impactante. Tivemos reações bem violentas em 2009, mas dessa vez foi muito mais, por parte desses grupos. Da sociedade, acho que está havendo muito mais apoio [à vítima]”, avalia Paula Viana.
O médico, que anos atrás se dizia otimista em relação aos avanços dos direitos da mulher, agora vê um retrocesso.
“Realmente acho que o Brasil piorou. Está mais difícil. Mas acredito que o lado bom do brasileiro é maioria. As pessoas boas também estão se organizando”, afirma.
Integrantes de movimentos feministas estiveram no hospital para protestar a favor do direito da menina capixaba de realizar o aborto. Olimpio afirma que mesmo o aborto legal ainda é difícil no Brasil, apesar de permissão em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de anencefalia no feto. E um dos principais empecilhos é o comportamento de médicos e funcionários em relação às pacientes.
O primeiro hospital em que a menina de dez anos tentou realizar o aborto, em Vitória, se negou a fazer o procedimento alegando falta de capacidade técnica para expelir o feto após 22 semanas de gestação —a garota estava com 22 semanas e quatro dias.
Olimpio diz que a proibição do aborto fora desses três casos previstos em lei só interessa aos médicos criminosos, que fazem o procedimento ilegalmente, cobrando valores em torno de R$ 5.000.
“Nós que fazemos o aborto legal queremos que seja de graça, no SUS. Com a proibição, rico faz aborto e pobre morre. Só quem é pobre que paga com a vida, com o sofrimento, com a perseguição”, diz.
Durante o procedimento, contam os enfermeiros da unidade, a menina ficou todo o tempo abraçada a uma girafa de pelúcia.
“É uma menina, com cara de bebê ainda. Muito calada, com olhar muito triste e, ao mesmo tempo, tão segura. Essa menina precisa de muita proteção e muita assistência psicológica”, diz Paula Viana. A avó paterna, com quem a criança vive, a chamava de “minha filha” o tempo todo, segundo a enfermeira, e se mostrava aflita.
Viana diz que a menina mostrava entender tudo o que a equipe médica lhe explicava e foi muito cooperativa. No hospital, enquanto uma TV transmitia um jogo de futebol, ela contou que também gosta de jogar bola. “Me disse assim: ‘estou louca para ficar boa, para jogar futebol’”, conta.
“A exposição foi outra violência que ela sofreu. Como vai voltar pra mesma casa? A mesma escola? Vai ficar marcada por causa da quebra do sigilo. Talvez tenha que mudar de estado, de nome. É preciso passar uma borracha nisso para que ela possa ser feliz”, diz Olimpio.
Foto: Filipe Jordão.