Na alça de acesso da rodovia que liga Fortaleza à terra indígena Pitaguary, em Maracanaú, na região metropolitana, uma pichação alerta: aqui quem controla é a facção criminosa cearense GDE (Guardiões do Estado). Na aldeia se misturam a floresta, casas de pau a pique, um açude e mais inscrições do tipo.
Foi lá que a cacique Madalena, 54, foi atingida com um tiro na nuca de uma espingarda calibre 12. Até hoje ela não sabe como conseguiu chegar consciente no hospital e ser liberada no dia seguinte, com oito pontos e três pedaços de chumbo que ficaram alojados na sua cabeça após a retirada da bala.
“Só consegui dizer ‘Jesus de Nazaré, me proteja’”, conta ela, que é professora de ensino infantil e fundamental há 20 anos na escola indígena. O atentado, no fim de 2018, foi posto em prática por um velho conhecido da cacique, que passara a ocupar as fileiras da facção. “Ajudei a criar, ensinei a ler e escrever”, diz sobre o rapaz, que está foragido. A investigação da polícia aponta que ele recebeu R$ 170 para matar Madalena.
Segundo a Folha de S.Paulo, após o episódio, a cacique deixou sua terra por três meses e passou a viver sob proteção do Estado. “Para mim, foi a maior tortura. Meu trabalho é tudo, eu estava mais doente fora daqui”, conta ela, que voltou para a casa simples na aldeia, mas ainda segue sob esquema de segurança. São três remédios tarja preta para Madalena conseguir dormir e manter a depressão sob controle. “Somos oprimidos, perseguidos, ameaçados, espancados. Mas eu não caí, estou aqui.”
Com pouco mais de 220 mil habitantes, Maracanaú é a primeiríssima da lista de cidades mais violentas do Brasil. Em 2017, foram 145,7 homicídios por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência 2019, realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A título de comparação, no país a taxa média de homicídio é de 28 por 100 mil habitantes.
Além de Maracanaú, onde vivem os Pitaguary, a região metropolitana tem outros três municípios com terras indígenas: Caucaia (Anacé, Tapeba), Pacatuba (Pitaguary) e Aquiraz (Jenipapo-Kanindé). Esta última foi palco para o assassinato do traficante Rogério Jeremias de Simone, conhecido como Gegê do Mangue, e seu parceiro Fabiano Alves de Souza, o Paca, em fevereiro de 2018.
Gegê era apontado como o chefe do PCC (Primeiro Comando da Capital) fora dos presídios e comandava as principais ações de tráfico de drogas para a Europa. Sua rotina incluía estadias no Paraguai (grande produtor de maconha), Bolívia (maior produtor de folha de coca, base para a produção de cocaína) e Ceará, uma das rotas de escoamento de drogas para fora do país, onde “planejava ampliar seus negócios ilícitos”, de acordo com o Gaeco (grupo de combate ao crime organizado) cearense.
Os dois traficantes moravam em uma mansão em Aquiraz, cujo valor estimado é de R$ 2 milhões. Mas todas as reservas da região metropolitana são controladas, em maior ou menor grau, pelo crime organizado, que tem recrutado índios para seus quadros, principalmente meninos adolescentes, segundo fontes ouvidas pela Folha. Por lá, é feito parte do processo produtivo da droga, como separação, pesagem e ensacamento.
Depois, ela é vendida dentro das aldeias e levada para outras cidades e áreas nobres de Fortaleza. Também há tráfico de beira de estrada, no caso das aldeias às margens das BRs. A cidade de Maracanaú é ainda local estratégico para armazenamento e venda de armas. Em uma das aldeias dos Tapebas, em Caucaia, uma família indígena foi expulsa da reserva no ano passado. Hoje, 14 líderes indígenas fazem parte do programa de proteção a defensores dos direitos humanos ameaçados no entorno da capital cearense.
O avanço do crime nessas áreas não é de hoje. No Ceará, começou entre 2015 e 2016, junto com o espalhamento das facções criminosas do Sudeste ao Nordeste, mas vem se aprofundando, principalmente no último ano, afirmam lideranças indígenas.
Essas terras se tornam mais férteis para o crime porque não foram demarcadas, defende Weibe Tapeta, um dos líderes da etnia. Segundo a Funai, há 25 terras indígenas no estado em diferentes etapas administrativas da demarcação, mas apenas uma que teve o processo finalizado. O Ceará é o estado mais atrasado em demarcação no país. A Constituição de 1988 determina que a União deve proteger as terras dos índios e demarcá-las dentro de um prazo de cinco anos —o que não vem acontecendo na prática.
E a morosidade aumentou no ano passado com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), diz a presidente da Federação Estadual dos Povos Indígenas, Ceiça Pitaguary. Antes de assumir, Bolsonaro afirmou que seu governo se oporia a novas regularizações. “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena.
O índio não pode continuar sendo preso dentro de uma área demarcada como se fosse um animal dentro de um zoológico”, disse Bolsonaro. Desde sua posse, as invasões de territórios indígenas deram um salto: 160 casos foram registrados em nove meses do ano passado, contra 109 em todo o ano de 2018.
“A Funai [Fundação Nacional do Índio] está paralisada e o governo quer dizer a todo custo que não existe índio no Brasil. Isso torna as terras mais vulneráveis ao avanço do crime organizado”, diz Ceiça. Sem demarcação, “há negligência dos órgãos de segurança pública no estado que acabam deixando as áreas descobertas”, afirma Weibe Tapeba.
É um jogo de empurra, ele explica. As Polícias Militar e Civil alegam que as terras são de responsabilidade da Polícia Federal. Por outro lado, a PF argumenta que crimes comuns e policiamento podem e devem ser feitos pelas corporações estaduais, já que a federal não tem efetivo suficiente.
“E nós é que corremos risco com a omissão”, diz o líder Tapeba. OUTRO LADO Segundo a Secretaria da Segurança Pública do estado, sob gestão de Camilo Santana (PT), não há ocorrências de maior gravidade nas áreas indígenas do Ceará.
A pasta afirma que a Polícia Civil atua nas investigações de delitos, como homicídios, que não estão ligados diretamente à condição da vítima ser índio, além de roubos, furtos, tráfico de drogas.
A atuação da PM, ainda de acordo com o órgão, é pautada em dados sobre quais locais têm maior incidência de delitos. Já no caso de crimes específicos contra a população indígena, a competência das investigações é da Polícia Federal, informa a secretaria.
“É importante destacar que apesar das atribuições de cada instituição, existe o diálogo entre as forças de segurança estaduais e federais”, disse, em nota. Para combater o crime organizado, a gestão afirma que tem investido em tecnologia, efetivo e equipamentos.