BRASÍLIA – Há mais de um ano em vigor e funcionando como um motor de incentivo a investimentos no saneamento, o marco legal do setor passará, a partir desta quarta-feira, 24, por um importante teste no Judiciário. O Supremo Tribunal Federal (STF) vai começar a julgar as ações que contestam a nova lei do saneamento, cujo principal pilar é permitir uma entrada mais forte de empresas privadas no fornecimento dos serviços de água e esgoto à população.
O modelo anterior, concentrado em empresas públicas, foi considerado fracassado ao deixar relevante parte da população desatendida. Hoje, 16% da população não tem fornecimento de água potável e quase metade não é atendida com rede de esgoto. Pelas metas do novo marco, até 2033, as empresas precisam garantir o atendimento de água potável a 99% da população e o de coleta e tratamento de esgoto a 90%.
Segundo o MSN, a análise pelo Judiciário acontece enquanto o marco legal enfrenta outras ofensivas, como a pressão de empresas estaduais pela extensão dos prazos impostos pela lei, além de tentativas de drible à realização obrigatória de processos licitatórios para contratação dos serviços, como revelou o Estadão/Broadcast.
Relatadas pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux, as ações que contestam o marco legal na Corte foram apresentadas pelo PDT, pelo PCdoB, pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe) e a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae). Um dos primeiros a acionar o STF contra a lei foi o PDT. Para a sigla, o texto afronta a Constituição Federal e prejudica as companhias públicas estaduais de saneamento.
Um dos pontos questionados pelo partido é a obrigação imposta aos municípios para licitar os serviços de saneamento, já que, antes, eles podiam fechar os contratos diretamente com as empresas públicas – os chamados ‘contratos de programa’. Agora, a concorrência é regra, o que abre espaço para as empresas privadas disputarem o mercado.
Um exemplo recente de grande processo licitatório no setor foi o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que arrecadou R$ 22,6 bilhões com dois consórcios vencedores, Aegea e Iguá, com quase R$ 30 bilhões de investimento contratado.
De acordo com estudo do Ministério da Economia, os projetos de saneamento na carteira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em fase de contratação somaram R$ 35,2 bilhões em 2021, cerca de um ano após a sanção do marco, contra R$ 3,5 bilhões em 2018.
Em defesa da lei, a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) ressaltou que, em uma análise nacional, o montante a ser investido no setor gerará um impacto direto e indireto na economia de mais de R$ 66 bilhões – resultado do aumento na demanda de diversas cadeias produtivas que compõem a expansão dos serviços de água e esgoto.
“Além desses resultados, em dezembro serão realizados outros 6 leilões, com números também expressivos de investimento e outorga. Declarar a constitucionalidade do Novo Marco Legal do setor consolidará os avanços em curso acelerando o caminho do País rumo à universalização do abastecimento de água e esgotamento sanitário para melhoria da vida da população brasileira”, afirmou a Abcon sobre o julgamento no STF.
As associações que representam as estatais de saneamento também querem que o STF permita o retorno dos ‘contratos de programa’, fechados diretamente com as prefeituras, sem licitação. A contestação da Aesbe chegou mais tarde no STF, na mesma época em que o governo editou um decreto que, na prática, pode fazer com que ao menos dez companhias estaduais do setor percam contratos por não terem viabilidade financeira para fazer frente às exigências da lei.
O decreto também é alvo de uma ação específica apresentada pela Aesbe no STF – que não será julgada nesta quarta. Neste processo, a associação pede a extensão do prazo para a comprovação da capacidade econômico-financeira, que segundo as normas atuais deve ser concluído até março de 2022. A data-limite vai ao encontro da lei, responsável por estabelecer que, até esse marco temporal, os aditivos com as metas de universalização previstas na legislação precisam estar incorporados aos contratos atuais.
Nos bastidores, estatais também fazem pressão para que a lei seja alterada e estenda oficialmente esses prazos. Como mostrou o Broadcast, já existem projetos de lei no Congresso com esse intuito. Essas empresas alegam que foram prejudicadas pelo atraso do governo em editar o decreto que define as regras de capacidade econômico-financeira de seus negócios. Pela lei, esse ato deveria ter sido publicado em 90 dias após a sanção do novo marco, que entrou em vigor em julho de 2020. O decreto, no entanto, veio quase um ano depois, em junho de 2021.
Técnicos do governo contrários à extensão desses prazos afirmam que a estratégia é feita apenas para protelar a implantação do novo marco, uma que, desde sua publicação, as estatais já poderiam trabalhar para atender as exigências da lei. Além disso, há outro temor: que uma nova discussão legislativa sobre o setor de saneamento abra portas para uma desconfiguração do novo marco legal. Uma fonte ouvida em caráter reservado destaca que, uma vez reaberto o debate, será difícil controlar eventuais ímpetos nesse sentido, principalmente sob pressão dos governadores, que são responsáveis pelas estatais de saneamento.
Foto: Nilton Fukuda/Estadão