O governo federal pagou ao menos R$ 6,1 milhões em propagandas defendendo o chamado “tratamento precoce” contra a covid-19, com um conjunto de remédios ineficazes contra a doença, conforme estudos e testes científicos. Os repasses, de acordo com o próprio governo, devem chegar a R$ 13 milhões. A campanha, que tinha como objetivo orientar a população, foi veiculada entre 16 de novembro e 30 de dezembro de 2020, em estações de rádio, programas de TV e outdoors.
O valor foi pago à agência Calia/Y2, que produziu as peças e negociou a veiculação destes anúncios em rádios e TVs de todo o Brasil, assim como em espaços de mídia exterior, tais como paradas de pontos de ônibus e outdoors. Com a dedução de impostos, a empresa – que é comandada por Gustavo Mouco, irmão de Elsinho Mouco, ex-marqueteiro de Michel Temer– já recebeu R$ 5,99 milhões.
O maior contrato pago pela agência, sob as ordens do Ministério das Comunicações, foi para a TV Record: em duas notas fiscais, a agência recebeu R$1,31 milhão para veiculação da campanha na emissora ligada à Igreja Universal. A campanha teve alcance nacional, mas não fica claro quantas inserções defendendo o “tratamento precoce” defendido pelo governo foram efetivamente ao ar.
Fazer campanha de orientação à população é uma das atribuições do governo. A contratação de agências de publicidade para isso faz parte do processo. O problema, neste caso, é que já está comprovado cientificamente que não existe tratamento precoce contra a covid-19. Práticas como uso de máscara, álcool em gel e distanciamento social são as medidas consideradas mais eficazes pela comunidade científica.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce para covid-19 com qualquer medicamento, como cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal e dióxido de cloro. Alguns desses procedimentos são defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro.
A maioria das notas fiscais relativas à campanha de tratamento precoce – 189 das 259 confirmadas pelo ministério – se refere a campanhas em emissoras de rádio. A lista, disponível na base de dados do governo federal, indica que a pasta gastou R$ 741 para veicular a campanha na Alvorada FM, de Parintins, Amazonas; outros R$ 2.316 foram para a Boa Vontade FM em Manaus; e R$ 2.394 para a Aleluia FM.
Apesar de baixos, os valores são simbólicos, pois foram destinados ao estado que mais sofreu com a pandemia no Brasil nos últimos meses, com superlotação em hospitais e falta de oxigênio hospitalar. As mensagens, de acordo com o Ministério das Comunicações, foram veiculadas entre novembro e dezembro – pouco antes do pico da segunda onda de covid-19 no estado, quando mais de 200 pessoas foram sepultadas, em média, por dia, na capital amazonense. Muitas delas mortas por falta de oxigênio nas unidades de saúde.
Para veicular as campanhas na Super Rádio Tupi, do Rio de Janeiro, foram quase R$ 73 mil. Para a Gazeta FM, da capital paulista, foram R$ 33 mil. Na Capital, líder na frequência AM na cidade de São Paulo, o valor foi de R$ 60,67 mil– descontado o valor da própria agência e os impostos, o montante considerado como pago à emissora foi de R$ 51,6 mil.
R$ 385 milhões desde 2016
Todas as notas fiscais relativas a esta campanha de tratamento precoce foram pagas à mesma empresa: a Calia/Y2 Propaganda e Marketing. A Calia disse à reportagem que não poderia comentar sobre a campanha, já que não divulga dados de clientes. Registros das notas fiscais presentes no Portal da Transparência do governo federal, no entanto, dão mais detalhes sobre os pagamentos.
O governo cita apenas que o pagamento é relativo à “agenda positiva regional” e que está vinculado a um contrato, firmado em 2016. Apesar da campanha tratar de pandemia, o contrato foi assinado pelo extinto Ministério do Esporte com a empresa para “prestação de serviços de publicidade”, envolvendo nisso “o estudo, o planejamento, a conceituação, a concepção, a criação, a execução interna, a intermediação e supervisão da execução externa e a distribuição da publicidade aos veículos de comunicação e divulgação”.
O objetivo era “difundir ideias, princípios, iniciativas ou instituições ou de informar o público em geral” e o contrato previa que a Calia deveria manter nove profissionais apenas para esta demanda.
Este acordo foi firmado em dezembro de 2016 , três meses depois de o impeachment de Dilma Rousseff (PT) ser oficializado pelo Senado Federal. No primeiro ano, o contrato previu o pagamento de R$ 55 milhões pelo serviço à Calia de Gustavo Mouco, irmão do marqueteiro do então presidente Michel Temer.
Desde então, anualmente, o contrato já teve cinco aditivos, sempre em valores maiores que o original. Em todos eles, incluindo o mais recente, firmado em dezembro do ano passado, o valor é de R$ 66 milhões.
A Calia tem também contratos com outros órgãos da administração federal – a empresa aparece, no Portal da Transparência, como ganhadora de quatro contratos, prestando R$ 1,5 bilhão em serviços de publicidade ao governo federal . Um destes contratos, fechado com a Presidência da República, deve render R$ 728 milhões ao grupo.
Há contratos que, inclusive, passam por baixo do radar da Transparência. A Calia foi a vencedora de um certame de R$ 27 milhões com a Embratur, ligada ao Ministério do Turismo. A escolha da empresa ocorreu sem licitação.
Para Ministério, campanha não chegou à metade
O Congresso em Foco contatou o Ministério das Comunicações e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República para entender os gastos com a publicação de peças defendendo o tratamento precoce. Em resposta à reportagem, a Secom confirmou os números apontados e disse que os valores recebidos pela Calia/Y2 para a campanha de tratamento precoce não contemplam 50% do esperado para a campanha.
“Considerando o valor total estimado para a campanha, espera-se que a agência de publicidade ainda encaminhe documentos fiscais e comprovantes referentes a cerca de R$13 milhões”, escreveu a Secretaria de Comunicação. A campanha foi produzida pelo Ministério da Saúde, mas foi reforçada por ações da Secom, afirmou a pasta.
O Ministério da Saúde foi procurado para esclarecer detalhes da campanha, mas ainda não retornou os contatos.
Foto: Carolina Antunes.