Entenda o processo de cubanos por ‘trabalho escravo’ no Mais Médicos

A médica cubana Tatiana Caraballo dedicou mais de 25 anos da carreira à sua especialidade: a ginecologia. Foram anos de plantões e atendimentos nos hospitais do país-natal, em Belize e na Venezuela. Em 2014, convocada pelo governo Castro, tomou um avião em Havana e desembarcou no Brasil para integrar o Programa Mais Médicos.

Alocada em Limeira (SP), mal falava português, mas atendia até 30 pacientes por dia e tratava de casos de hipertensão até DSTs, segundo reportagem da BBC de outubro de 2019. Ganhava R$ 1.200 por mês, enquanto os colegas brasileiros embolsavam quase R$ 12 mil. A diferença ia para o governo de Cuba, condição para os médicos virem para o Brasil.

Segundo relato da médica, além de receber 10% da remuneração dos colegas, a jornada de trabalho era de 64 horas, acima do limite de 40 horas semanais permitido por lei.

Hoje, com 51 anos, Tatiana vive nos Estados Unidos e tem um salário de US$ 3.500 (algo em torno de R$ 18,7 mil) obtido na função de despachar roupas e sapatos de uma gigante do varejo online para os compradores.

Com o fim dos Mais Médicos, em novembro de 2018, Tatiana encabeçou uma ação de classe movida contra a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) na justiça dos Estados Unidos por um grupo de médicos cubanos que acusa as missões cubanas de saúde de “trabalho escravo”.

“Esse processo é algo bem excepcional e vai depender da justiça norte-americana avaliar a jurisprudência para uma condenação, mas acho pouco provável que seja paga uma indenização”, afirma o doutor em direito Civil pela Universidade de São Paulo e advogado do escritório Cascione Renato Moraes.

O Programa Mais Médico nasceu em 2013 e contou com a participação de cubanos via Opas. Esses profissionais foram enviados ao Brasil para atuarem em Unidades Básicas de Saúde localizadas em regiões do país onde havia carência no atendimento primário à população.

Em 2018, o governo cubano decidiu deixar o programa brasileiro, que contou com a participação de mais de 11 mil médicos vindos da ilha caribenha e foi alvo de críticas e denúncias sobre as condições de trabalho.

Por ser uma ação coletiva, todos os médicos cubanos que trabalharam no Brasil pelo Mais Médicos e que vivem nos EUA também podem receber um valor indenizatório caso a Opas seja condenada.

Procurado pelo R7, o Conselho Federal de Medicina enviou nota em que afirma que “a gestão dos intercambistas participantes do Programa Mais Médicos está sob a responsabilidade do Ministério da Saúde”.

Por sua vez, o Ministério da Saúde informou ao R7 que o limite de horas trabalhadas, por semana, é de 40h, o que fornece munição para Tatiana e os colegas cubanos no processo. Porém, ressalta que a tarefa de recrutar e acertar salários com os médicos cubanos era da Opas.

“A carga horária a ser cumprida por todos os participantes do projeto, sejam admitidos por meio de intercâmbio ou via chamamento público, está definida em Portaria Interministerial nº 1.369/2013 (artigo 10, inciso VI), que atribui jornada de 40 horas semanais – salvo especificidades das equipes de saúde da família ribeirinhas e fluviais. A pasta também esclarece que o recrutamento e pagamento competia à Opas”, disse a pasta em nota.

Brasil isento de culpa

Mesmo com uma eventual decisão favorável aos cubanos, Moraes explica que o Brasil não seria responsabilizado nem pela situação que esses profissionais viveram aqui nem pelas condições de trabalho, por ser uma questão relacionada, principalmente, à Opas e ao governo cubano. No máximo, a imagem do país ficaria arranhada.

Em novembro do ano passado, a ONU enviou uma carta para Cuba chamando a relação de trabalho dos médicos dos programas de saúde de “escravidão contemporânea”. Nesse documento, pede explicações sobre as denúncias.

O documento aponta que US$ 11 bilhões (R$ 59 bilhões) foram enviados para o pagamento do salário dos participantes de programas de médicos cubanos em outros países, entre 2011 e 2015, mas que somente 80% desse valor tiveram tal destino.

A ONU também afirma que há relatos de medo de represálias caso o médico decidisse abandonar um programa.”A ONU ou qualquer outro órgão internacional não tem o poder de julgar e condenar. Essa carta pode apenas pedir explicações ou esclarecimento ao governo de Cuba sobre a denúncia que veio à público”, explica Moraes.

Em resposta enviada em janeiro deste ano, o governo cubano disse que “a cooperação médica cubana está comprometida com os princípios de altruísmo, humanismo e solidariedade internacional em mais de 55 anos de intercâmbios”.

Cuba afirma também que é falsa a alegação de “escravidão contemporânea” apontada pela ONU e que os profissionais não tiveram o direito de liberdade restringido e não foram coagidos a participar das missões em outros países.

O advogado explica que o trabalho análogo à escravidão tem algumas características. “Não é apenas o valor baixo do salário e a carga horária de trabalho que são levados em consideração nesses casos. É necessário que existam medidas, por parte do empregador, que tenham como objetivo restringir a liberdade do trabalhador de ir e vir”, explica o advogado.

Para o especialista, a ação contra a Opas pode ter um outro objetivo. “O processo pode fazer parte de uma estratégia dos advogados dos médicos cubanos para forçar um acordo, algo que é muito comum na justiça dos EUA, já que uma ação de classe pode obrigar o pagamento de uma indenização muito alta para todos os médicos que estiveram na mesma situação”.

O R7 pediu um posicionamento à Opas sobre a situação dos médicos cubanos no Brasil durante o Programa Mais Médicos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O Itamaraty também foi procurado pela reportagem sobre as denúncias feitas pelos cubanos, mas também não se pronunciou.

Na última sexta-feira (4), a reportagem procurou a Embaixada de Cuba por telefone, mas o expediente havia sido encerrado. O espaço está aberto para manifestação.

Foto: José Cruz.