Especialistas ouvidos pelo G1 acreditam que os indiciados pela morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, deveriam responder pelo crime de racismo. No inquérito divulgado, nesta sexta-feira (11), a Polícia Civil do RS cita o racismo estrutural como uma das causas para o assassinato. O homem negro foi morto por dois seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre.
A conclusão do caso, com o indiciamento de seis pessoas, entre elas os dois seguranças que espancaram a vítima até a morte, foi divulgada nesta sexta-feira (11) pela Polícia Civil.
Os seis responderão por homicídio triplamente qualificado: por motivo torpe, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Ninguém foi responsabilizado por crime de racismo.
Para o advogado e especialista em Direito Público Gleidson Renato Martins Dias, a citação do racismo estrutural no relatório da Polícia Civil sobre o indiciamento foi “muito tênue”.
“Faltou ela linkar [relacionar] o motivo torpe ao motivo racial. Ela faz isso textualmente de forma muito tímida, citando inclusive apenas um só teórico [o professor e filósofo Sílvio Almeida], temos tantos outros – Sueli Carneiro, Adilson Gonzaga, o próprio Adbias do Nascimento, que já falava lá em 1979 sobre o genocídio da população negra, então foi tímida no meu ponto de vista abordagem teórica”, analisa Gleidson.
Para a polícia, o racismo estrutural foi uma das causas para determinar a conduta das pessoas envolvidas no assassinato, sendo citado na contextualização da qualificadora do motivo torpe.
“Nós entendemos que uma outra pessoa estando naquele momento, naquele lugar, poderia ter um tratamento diferenciado”, diz o relatório, assinado pela titular da 2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, Roberta Bertoldo.
“O que a delegada quis dizer nesse relatório é que se essa pessoa fosse branca, teria sido tratada de forma diferente. Ela faz esse questionamento de forma expressa, da mesma forma que ela consegue entender que é o racismo estrutural essa naturalização da subhumanização, inclusive a possibilidade de violências até fatais para pessoas negras, que é o motivo da morte”, diz Gleidson.
A morte de João Beto, segundo o advogado, é um caso paradigmático. “O estado brasileiro precisa entender e mais que entender, punir, com toda a severidade possível atos raciais. Tem que ser quase um qualificador automático”.
Gleidson redigiu um projeto de lei que será apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS) alterando o artigo 121 do Código Penal, que tipifica o homicídio, incluindo o crime cometido em razão de raça, cor ou etnia como qualificadora, ou seja, fator que agrava o enquadramento do caso na lei.
Se aprovado, isso significa que crimes com conotação racial podem receber penas maiores, por exemplo.
“O que aconteceu no Carrefour foi morte por racismo, então cabe entender primeiro o que é racismo, a forma que o racismo se manifesta pra depois fazer uma avaliação concreta do caso”, conclui.
Banalização do racismo estrutural
A coordenadora do Uniafro (que pertence à UFRGS), Gládis Kaercher entende que há um problema na banalização do conceito de racismo estrutural.
“Essa banalização se presta perfeitamente ao funcionamento do racismo brasileiro. Porque o Silvio de Almeida é muito explícito nas teorizações: existem atos de racismo praticados por pessoas concretas, que têm CPF. Esses atos são ocultados, são mal interpretados, não são devidamente apurados pelas instituições. Isso é o racismo institucional”, diz.
Simplesmente citar o racismo estrutural é uma forma de “tirar responsabilidades” da atitude individual de quem perpetua atos de racismo.
“O racismo individual e institucional funcionam para a manutenção do racismo estrutural, elemento estruturante das instituições e do pensamento no Brasil”, diz. “É mais ou menos como se dissesse ‘é estrutural, o que a gente pode fazer com isso, né?”, analisa.
Ela avalia que o indiciamento faz justiça para o caso “em parte”. Não há a dimensão didática que deveria conter. A inspiração racista do crime deveria estar no inquérito, explicitamente registrada.
Sem punição para o Carrefour e a Vector
A coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro, Indígena e Africano da UFRGS (NEAB-UFRGS), Tamyres Filgueira, observa que não houve responsabilização para o Carrefour e nem para a empresa de segurança Vector no inquérito. “Ambos devem também pagar pelo crime que foi cometido”, avalia.
“A delegada aponta corretamente que o racismo estrutural foi uma das causas da ação violenta no Carrefour, o que é um grande avanço, mas se torna insuficiente pois ela não coloca no inquérito o racismo como um dos crimes praticados”, diz.
“É urgente que o racismo seja punido e combatido no Brasil, apesar do vice presidente Mourão dizer que não existe racismo no Brasil, nós negros e negras sofremos diariamente na pele os ataques racistas e vemos nossos irmãos e irmãs morrendo vítimas desse crime”, lamenta Tamyres.
‘Dificilmente vai acontecer com o branco’, diz pai
Pai de João Alberto, João Batista Rodrigues Feitas disse ao G1 que não viu notícias sobre o indiciamento dos responsáveis pela morte do filho, mas foi avisado por vizinhos.
“Eu considero assim um tanto satisfatório o trabalho da polícia, estão trabalhando arduamente. A princípio, eu acho que o inquérito policial está sendo muito bem conduzido”, opinou.
Porém, ele acredita que os envolvidos deviam ser responsabilizados por racismo. “Por outros fatos que a gente sabe que acontece, isso é mais fácil de acontecer com o preto, o moreno. Dificilmente vai acontecer com o branco”, avalia.
João, que é pastor evangélico, diz que confia na Justiça “de Deus e dos homens” para ver o julgamento e a punição corretas para o caso.
“Sou apenas o pai, sei a dor que estou sofrendo. Eu espero que seja uma punição exemplar. E que sirva para prevenir casos que podem vir acontecer. Esse é o meu pensamento”, afirma.
João Batista afirma que o Carrefour disponibilizou uma assistente social para auxiliar a família.
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