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A história do voo iraniano derrubado pelos EUA mais de 30 anos antes de nova tragédia

Dias antes da queda do avião ucraniano que matou 176 pessoas no Irã, uma troca de farpas via Twitter entre os presidentes americano e iraniano trouxe à tona um episódio pouco lembrado nos EUA, mas ainda vivo na memória do Irã: o ataque ao voo comercial 655 da companhia aérea Iran Air, derrubado em 1988 por um míssil disparado por um navio da Marinha americana.

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Segundo o msn, no último fim de semana, o americano Donald Trump ameaçou via Twitter destruir 52 alvos no Irã, em referência aos 52 americanos feitos reféns após a tomada da embaixada dos Estados Unidos em Teerã em 1979, o presidente iraniano, Hassan Rouhani, respondeu com outro número de significado histórico: 290.

“Aqueles que se referem ao número 52 deveriam também se lembrar do número 290. #IR655 Nunca ameace a nação iraniana”, postou Rouhani em sua conta no Twitter na segunda-feira (6).

Rouhani se referia ao número de vítimas do episódio com o Iran Air 655.

As declarações de Trump e Rouhani ocorreram após os Estados Unidos matarem o general iraniano Qasem Soleimani, na semana passada, em um ataque em Bagdá, no Iraque. Soleimani era considerado o segundo homem mais importante do país, atrás apenas do líder supremo do Irã, o aiatolá Khamenei.

Dois dias depois, a tensão diplomática entre os países acabaria por envolver a queda de outro avião. Na quarta-feira (8), o voo PS752 da companhia Ukraine International Airlines caiu pouco depois de decolar de Teerã com destino a Kiev (Ucrânia).

Neste sábado (11), o governo iraniano admitiu que derrubou por engano o avião ucraniano.

Uma investigação interna identificou que “mísseis foram disparados por falha humana”, afirmou o presidente Hassan Rouhani. Ele descreveu a tragédia como um “erro imperdoável”.

Militares disseram que o avião voava muito perto de um lugar sensível que pertence à Guarda Revolucionária do Irã e foi considerado, por engano, uma aeronave hostil.

A tragédia do voo 655, em 3 de julho de 1988, aconteceu nos meses finais da guerra entre Irã e Iraque, na qual os Estados Unidos apoiavam os iraquianos e seu líder, Saddam Hussein.

Em meio ao conflito, o governo iraniano parava embarcações no Golfo Pérsico que suspeitava estarem fazendo negócios com o Iraque, e navios de guerra americanos patrulhavam o Estreito de Hormuz, com o objetivo de proteger rotas marítimas importantes no comércio de petróleo.

Naquela manhã, segundo um relatório do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, um helicóptero lançado pelo cruzador americano USS Vincennes em uma missão de reconhecimento havia sido atingido por disparos vindos de pequenas embarcações iranianas.

Enquanto esse conflito entre embarcações dos Estados Unidos e do Irã se desenrolava no Golfo Pérsico, o Airbus A300 da Iran Air decolava de um aeroporto próximo, na cidade iraniana de Bandar Abbas, uma escala na rota entre a capital Teerã e o destino final, Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Estavam a bordo 16 tripulantes e 274 passageiros, entre eles 66 crianças.

O aeroporto de Bandar Abbas era usado tanto por aeronaves civis quanto por militares e, segundo o governo americano, quando o jato comercial foi detectado pelo radar do Vincennes, membros da tripulação confundiram o avião de passageiros com um caça militar iraniano.

O voo da Iran Air estava em águas territoriais iranianas e seguia sua rota normal, mas havia decolado com mais de 20 minutos de atraso. O governo americano diz que, pensando se tratar de um caça em procedimento de ataque, o Vincennes enviou uma série de advertências à aeronave.

Sem obter resposta, disparou dois mísseis, derrubando o avião e matando todas as 290 pessoas a bordo. Entre as vítimas, 254 eram cidadãos iranianos.

Reação dos EUA

No dia seguinte, o presidente americano, Ronald Reagan, que estava em Camp David para o feriado de 4 de julho, dia da Independência dos Estados Unidos, ofereceu “condolências aos passageiros, à tripulação e às suas famílias”.

“Esta é uma tragédia humana terrível”, disse Reagan em declaração à imprensa. Mas o líder americano afirmou também que o avião ia em direção ao Vincennes e não respondeu a “repetidas advertências”. Segundo Reagan, a embarcação americana havia agido “para se proteger de um possível ataque”.

A conclusão do Departamento de Defesa, em relatório divulgado em 18 de agosto daquele ano, foi a de que não houve conduta negligente por parte dos americanos e que o Irã deveria “dividir a responsabilidade pela tragédia”, por ter permitido que um jato comercial voasse sobre a área em que se desenrolava o conflito entre embarcações dos dois países.

Mas poucos meses depois, em dezembro, a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), agência das Nações Unidas especializada em transporte aéreo, divulgou seu próprio relatório, em que identificou “precauções vagas e inadequadas” da Marinha dos Estados Unidos para evitar que aeronaves civis se aproximassem de operações de combate no Golfo Pérsico, que contribuíram para a tragédia.

Um dos pontos ressaltados pela OACI foi a falta de equipamentos adequados nos navios americanos para monitorar as frequências de rádio usadas pelo controle de tráfego aéreo civil, o que teria permitido a identificação do avião de passageiros. As advertências feitas pelo Vincennes antes de disparar os mísseis foram transmitidas em canais de emergência, a maioria delas em um canal militar, ao qual os pilotos do voo 655 não tinham acesso.

Apesar de os Estados Unidos garantirem que a derrubada do voo 655 foi um acidente, o Irã não aceitou a explicação e acusou os americanos de terem agido deliberadamente e ilegalmente enquanto estavam em águas iranianas.

Os Estados Unidos haviam rompido relações diplomáticas com o Irã em 1980, após a tomada da embaixada dos Estados Unidos em Teerã em 1979 por manifestantes iranianos, que mantiveram 52 americanos como reféns durante 444 dias.

“O Irã não acreditou que foi um erro”, diz à BBC News Brasil o historiador Abbas Milani, diretor do programa de Estudos Iranianos da Universidade Stanford, na Califórnia.

No ano seguinte à tragédia, em maio de 1989, o Irã processou os Estados Unidos na Corte Internacional de Justiça da ONU. Os dois países chegaram a um acordo em 1996. Os Estados Unidos concordaram em pagar US$ 61,8 milhões (cerca de R$ 252 milhões) às famílias das vítimas iranianas, mas nunca admitiram responsabilidade nem se desculparam formalmente. Apesar de sua atuação no tragédia, os comandantes do Vincennes na época do ataque foram agraciados com medalhas em 1990.

“Tudo isso tornou (a derrubada do voo 655) um momento muito simbólico na história”, ressalta Milani.

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